Plano Nacional

Décio Luiz Gazzoni

 

Em 2005, o Ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, me convidou para elaborar dois importantes documentos: as Diretrizes do Governo Federal para a Agroenergia e o Plano Nacional de Agroenergia (PNAE). Estes documentos balizaram a atuação do Governo de 2006 a 2011. Sob sua égide, foi implantado o programa de biodiesel; a produção de bioetanol cresceu 80%; e foi criada a Embrapa Agroenergia, que coordena a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico do setor.   Em 2012 fui convidado pela COPEL para escrever um capítulo do livro “Energias renováveis: políticas públicas e planejamento energético”, que acaba de ser lançado no mercado. O capítulo analisa os efeitos do PNAE, uma política pública macro-orientadora, que estabeleceu diretrizes, objetivos e orientações, que motivaram políticas públicas e ações do Governo Federal e de outras instâncias governamentais, com o intuito de favorecer o crescimento e a consolidação da agroenergia no Brasil. Seu objetivo foi “Estabelecer marco e rumo para as ações públicas e privadas de geração de conhecimento e de tecnologias que contribuam para a produção sustentável da agricultura de energia e para o uso racional dessa energia renovável. Tem por meta contribuir para tornar competitivo o agronegócio brasileiro e dar suporte a determinadas políticas públicas, como a inclusão social, a regionalização do desenvolvimento e a sustentabilidade ambiental.”  

Em linha com a diretriz, merecem realce as seguintes conquistas do PNAE: a)Entre 2005 e 2009 a agroenergia saltou de 25 para 29% do balanço energético nacional; b) nos estados não tradicionais de MS, GO e MG, a produção de etanol cresceu 72, 89 e 104%; c) a cadeia produtiva de etanol gera 10,9 empregos por tonelada equivalente de petróleo (TEP) produzida, enquanto o setor de petróleo e gás natural proporciona aproximadamente 0,47 empregos / TEP produzida no Brasil; d) em 2009 deixaram de ser emitidas 46,5 milhões de toneladas de CO2, sendo 93% devido ao etanol e 7% devido ao biodiesel, valor correspondente a 34% das emissões totais de CO2 inventariadas em 2005, para todo o setor energético.

Em conclusão, o PNAE foi uma política de alto retorno positivo para o Brasil – um exemplo a emular.

 

 

 

Apagão logístico
Décio Luiz Gazzoni

 

       

Há uns 8 anos, meu amigo Roberto Rodrigues vaticinou: dia virá em que viveremos um apagão logístico. Algo como a fila de caminhões de soja começando no porto de Paranaguá e terminando em Ponta Grossa! Sem qualquer dúvida, o maior limitador da realização do potencial do agronegócio brasileiro é a logística. Começa nas estradas rurais abandonadas pelas prefeituras nos últimos anos, continua pelo lastimável estado das estradas asfaltadas (estreitas, esburacadas e saturadas), passa pela ridícula malha ferroviária e ausência de hidrovias e acaba no caos dos portos.     A depender exclusivamente do agricultor, os 185 milhões de toneladas de grãos colhidos em 2013 seriam 350 ou 400 Mt. O entrave é o gargalo logístico que, no primeiro instante, cobra preços exorbitantes pelo frete; e, no segundo, por saturação, é inelástico em relação ao preço. Não fora a precariedade logística e exportaríamos o dobro ou o triplo das 25Mt de milho previstas para 2013, bem como exportaríamos mais soja, carne e açúcar, gerando mais renda e empregos.

 

 

Veja a diferença entre o agricultor e a infra-estrutura: Apenas em 2013, o produtor aumentou em 3 Mha a área de soja e vai colher 5 Mt de milho a mais. Por outro lado, na semana passada, eram 82 navios na fila, esperando para carregar grãos, somente em Paranaguá! Isto é impensável em qualquer país sério! O custo médio de demurrage (multa paga ao fretador por atraso) de um navio parado, esperando carga, é de US$ 30 mil por dia – equivalente a 60 t de soja. Segundo exportadores, para evitar 45 dias de fila de espera em Paranaguá, os caminhões são desviados para o Porto de Rio Grande, onde as filas duram menos de dez dias. Não bastassem os 2.500 km no trecho de Mato Grosso a Paranaguá, estica-se mais 1.000 km até Rio Grande – para ser mais rápido, embora mais longe da Europa! Para pagar a multa dos 45 dias seriam necessárias 2.700 t de soja, cerca de 4% da carga do navio, quase a produção de 1.000 hectares – evaporados à conta do Custo Brasil.   O agronegócio brasileiro enfrenta diversas ameaças para concretizar seu potencial de ser o protagonista em escala global, mas nenhuma se equipara aos entraves de logística e infra-estrutura que arrosta.

 

 

 

 

Questões sobre energia renovável
Décio Luiz Gazzoni

Realiza-se, de 7 a 10 de abril, na Cidade do México, o encontro anual do Conselho Internacional de Ciências, cujo tema será "Desenvolver a capacidade regional para ampliar o uso de energia renovável". Na condição de presidente, cabe-me proferir a conferência de abertura, que dará o tom do evento, na qual prospectarei os rumos do setor, até 2050.

Por razões práticas, a apresentação buscará responder a 15 questões cruciais, que condicionarão o maior uso de energia renovável. São elas: 1) Quanta energia será demandada pela sociedade global, até 2050? Quanto dessa energia será renovável, em cada década? 3) Quanto dessa energia pode ser gerada de forma sustentável? 4) Quais fatores favorecem energias sujas e quais as limpas? 5) Energia limpa é mais cara? 6) Qual a importância futura das políticas governamentais para o setor? 7) Energia renovável é importante para mitigar as mudanças climáticas globais? 8) Há necessidade de inovações sofisticadas para estocagem de energia gerada intermitentemente, como solar ou eólica? 9) O futuro pertence a sistemas de geração centralizados ou descentralizados? 10) Qual será o padrão de investimentos públicos e privados em energia renovável? 11) Qual o montante de investimentos necessário? 12) Como será o comportamento das empresas petrolíferas em relação à energia renovável? 13) A busca do "verde" determinará um padrão de comportamento social de consumo de energia renovável semelhante aos alimentos orgânicos? 14) Como será a evolução tecnológica do setor? 15) Quanto custará cada unidade de energia gerada de forma renovável, comparativamente à energia convencional, ao longo do tempo?   Como a responsabilidade de enfrentar uma plateia de monstros sagrados da Ciência Mundial é muito grande, há seis meses venho devorando centenas de artigos científicos, estudos e relatórios, para responder a cada questão de forma isenta, ponderada e apresentando cenários que sejam prováveis e factíveis, com respostas convincentes. Minha conclusão final é que o maior uso de energia renovável é uma questão de escolha da sociedade vez que, no futuro, as limitações não serão tecnológicas ou de custos. Aos interessados, a íntegra da apresentação (em inglês) estará disponível em www.gazzoni.eng.br.

 

 

Investimentos
Décio Luiz Gazzoni

Enquanto o prezado leitor lê esta coluna, participo de uma reunião na Cidade do México, na qual grandes investidores mundiais (os denominados big-shots corporativos) buscam informações detalhadas sobre o agronegócio de diversos países, para melhor balizarem seus investimentos, seja a montante, como na produção de insumos; no próprio sistema produtivo; ou a jusante, nas áreas de transformação, produção de alimentos, agregação de valor, armazenagem, transporte ou exportação. Para tanto, lideranças do agronegócio de países selecionados foram convidadas a demonstrar porque investir em seus países.   A lógica de minha apresentação passa, em primeiro lugar, pelo excelente currículo do passado recente do agronegócio brasileiro que, em 35 anos, se transmutou de importador de alimentos para um dos maiores exportadores de produtos agrícolas do mundo. Entretanto, apenas o passado não garante a continuidade de bons negócios. Por isto, faço um retrato da situação atual de nosso agronegócio, de sua pujança, do crescimento que se destaca em relação aos concorrentes, de sua produtividade e competitividade. E das ameaças, que se tornam boas oportunidades de investimento, como a infraestrutura de armazenagem, transporte e exportação.

 

 

Porém, uma vez mais, apenas o presente não indica que o futuro do país garanta o pay back de investimentos, que pode se estender por uma década. Por esta razão, alinhavo as principais vantagens competitivas do país, entre as quais se destaca o estoque de solo arável, a recuperação de áreas degradadas, a boa oferta climática na média do país, o estoque de água, agricultores empresariais de primeira linha e um sistema de geração e transferência de tecnologia único nas regiões tropicais do planeta. Para tanto, contamos com instituições de renome internacional como a Embrapa, o IAPAR ou o Agronômico de Campinas, além de excelências como a Emater Paraná, que cito nominalmente.   Espero haver sido convincente na sensibilização dos investidores, de forma a canalizarem seus investimentos para o Brasil, e me sentiria particularmente recompensado se alguns deles vierem especificamente para Londrina, que tanto necessita de novos e pujantes empreendimentos no agronegócio.

 

 

Sustentabilidade
Décio Luiz Gazzoni

É provável que, quando o leitor ler esta coluna, eu esteja apresentando minha palestra no evento denominado "Perspektiven für die Landwirtschaft: Fortschritt durch Nachhaltigkeitsbewertung" (Perspectivas para a agricultura: progresso através da avaliação da sustentabilidade). O seminário está sendo realizado em Berlim, na Alemanha, tendo como público as cadeias de suprimentos, importadores, exportadores, traders, distribuidores, supermercadistas, ONGs, associações de defesa do consumidor, fabricantes de insumos e máquinas agrícolas, cientistas, professores universitários e uma plêiade de representantes de outros segmentos.  

A sociedade moderna, em especial os cidadãos dos países que pertencem à OCDE, exigem regras cada vez mais restritas de inocuidade dos alimentos, de rastreabilidade, de certificação, em suma, de sustentabilidade. Não está mais tão fácil para os países essencialmente agrícolas venderem seus produtos para os mercados mais exigentes. Esse evento tem como objetivo entender os sistemas de produção dos países agrícolas, exportadores de alimentos, e a sua aderência aos rígidos sistemas de certificação sanitária, social e ambiental.

 

 

Minha missão é demonstrar, além de qualquer dúvida razoável que outros países do mundo podem produzir com a mesma sustentabilidade dos agricultores brasileiros, mas ninguém os supera. Para tanto, alinhavei números e estatísticas governamentais e independentes para mostrar os ganhos do passado recente e a seriedade das intenções futuras.   Nosso agronegócio avança a passos largos, sem dispor dos subsídios equivalentes a US$1 bilhão diários, dos seus colegas dos países ricos. Atualmente, o trabalhador médio brasileiro adquire sete vezes mais alimentos por hora trabalhada, comparativamente há 40 anos. E país nenhum do mundo possui área potencialmente agricultável, porém compulsoriamente protegida, como ocorre com os quase 300 milhões de hectares de parques nacionais, reservas indígenas, reservas legais, áreas de proteção permanente e outras formas de proteção do ambiente. Com este belo currículo, minha missão no evento foi muito facilitada, apesar do bombardeio de perguntas e esclarecimentos que, seguramente, receberei.

 

 

Produção sustentável
Décio Luiz Gazzoni

Na semana passada participei de evento sobre sustentabilidade na cadeia de suprimento de alimentos, realizado na Alemanha. Como prelecionistas ou participantes, apenas pessoas diretamente vinculadas ao assunto, como presidentes ou diretores de grandes grupos empresariais (fabricantes de insumos agrícolas, importadores, exportadores, distribuidores, retalhistas, supermercadistas), associações de produtores agrícolas e de consumidores, dirigentes de Governos e de Órgãos Regionais (como a União Europeia) ou internacionais (FAO, OMS, ONU, PNUD), pesquisadores e professores universitários.

  Foi recompensante demonstrar ao mundo, em 30 min de palestra, o quanto avançamos em sustentabilidade do agronegócio brasileiro, nos últimos 30 anos. E responder, convincentemente, uma a uma das questões nos 30 min seguintes, a maior parte delas relativas a desmatamento na Amazônia e alhures, perda de biodiversidade e contaminação de água. Só tive que ceder na infraestrutura, concordando que, enquanto a produção brasileira avançou 250%, nossa capacidade de escoá-la, nos últimos 10 anos, regrediu 20 anos.   Sustentabilidade veio para ficar, é parte do negócio. Todas as grandes empresas do mundo tem um diretor de sustentabilidade, que elabora e executa a política de metas de aumento da sua sustentabilidade, e impõe metas à montante da cadeia. Transpareceu-me que os elos à jusante da cadeia tendem a cobrar muito mais dos elos anteriores do que eles próprios fazem, o que acaba superpenalizando o agricultor! Não há um conceito único de sustentabilidade, nem acordo para sua certificação, o que foi uma das minhas cobranças fortes aos presentes, juntamente com o pagamento de serviços ambientais.

 

Importantíssimo: despareceu o sofisma de que é possível obter energia de cultivos não alimentares, sem conflito com produção de alimentos, o que era uma idiotice oportunista, pois se usa a mesma terra e os mesmos insumos.   Finalmente, consegui contatos sólidos para trazer a Londrina dois programas, com recursos a fundo perdido, caso venha a ser efetivado na SMAA: a remuneração do agricultor que protege as minas e a qualidade da água; e o controle da inocuidade dos alimentos na cadeia produtiva.

 

 

Ainda o apagão
Décio Luiz Gazzoni

Na mesma quinta feira, 28/2, em que o JL veiculou a coluna "Apagão Logístico", um grande jornal do país publicou o Editorial "Supersafra Represada", no mesmo tom, embora mais veemente, e utilizando outros fatos e números. Na segunda, 4/3, um telejornal de âmbito nacional divulgou auditoria do TCU, a qual constatou que, até um mês após a conclusão de recente operação "tapa-buracos", estes voltaram a aparecer nas mesmas rodovias federais. Dez de onze rodovias auditadas tiveram as obras reprovadas pelo TCU. Foram só 1.000 km auditados, de um total de 70.000 km de estradas, porém a má aplicação dos recursos foi de R$800 milhões. Caso isolado? Negativo, é um episódio recorrente.

 

Entretanto, o fato que dominou a pauta econômica da semana passada foi o assim chamado "Pibinho", o baixíssimo crescimento econômico do Brasil, inferior à média do mundo, da América Latina, dos BRICS, dos países emergentes, entre outros comparadores usados pela imprensa. Uma das explicações para o PIB fraco foi, justamente, o baixo nível de investimento da economia brasileira, posto que a prioridade de alocação de recursos foi no consumo (crédito ao consumidor) e não na produção e infraestrutura. O consumidor está muito endividado, perdeu a capacidade de resposta ao crédito e, por outro lado, a produção estancou.

 

Outra explicação foi a estabilização do PIB agrícola, motivado pela forte seca da safra 2011/12. Quando o agronegócio não bate recordes, o PIB brasileiro vai para o acostamento. Porém, nesta safra 2012/13, em que vamos colher a maior produção agrícola da História, que poderia alavancar o PIB nacional, parte da produção será perdida por falta de infraestrutura. Perdida porque a soja acaba caindo dos caminhões sacudidos nas estradas esburacadas. Perdida na ineficiência de armazenamento e de portos, ou nos excessivos custos de fretes e multas portuárias. Os silos do país podem armazenar apenas 70% da safra (133% nos EUA!). O frete de uma tonelada de soja do MT ao porto vale R$170, contra R$46 nos EUA ou R$40 na Argentina.

PIBÃO dependerá de diversos fatores: governança, investimentos, tecnologia. Mas não dispensará logística e infraestrutura na dimensão da ambição do crescimento econômico.

 

Apoiando investimentos
Décio Luiz Gazzoni

Anualmente, um seleto e reduzido grupo de altos executivos das cadeias do agronegócio (CEOs), alcunhados no jargão internacional de "big shots", reúne-se para atualizar informações que balizem seus investimentos. Agregados nas cadeias de insumos e de comércio internacional de produtos agrícolas, estes executivos administram parcela ponderável do PIB do agronegócio mundial, estimado em sete trilhões de dólares. Em 2013, o encontro será na Cidade do México, com foco na imposição social da sustentabilidade do agronegócio.  

Este escriba teve a elevada honra de ser convidado para expor os ganhos de sustentabilidade do agronegócio brasileiro, suas perspectivas de continuidade, e as oportunidades que se afiguram para o futuro mediato.

 

Tamanha responsabilidade obrigou-me a mergulhar em centenas de textos, análises e estatísticas, para formular um conjunto sintético, criativo e convincente a ser apresentado na reunião, demonstrando nossos avanços recentes. Do ponto de vista econômico, os últimos 20 anos testemunharam um salto superior a 200% na produção de grãos, de 50% no PIB do agronegócio (expresso em US$ nominais) e de estonteantes 800% nas exportações. Os ganhos ambientais também são expressivos, com o aumento da produtividade em 250% no período, evitando o desmatamento de milhões de hectares, reduzindo a demanda de insumos, a erosão, o consumo de água e as emissões de gases causadores de efeito estufa. O reflexo social é a queda acentuada no índice da cesta básica, que despenca do valor 100 (1974) para 14 (2013), significando que um trabalhador médio brasileiro adquire, hoje, sete vezes mais alimentos que em 1974, com o mesmo número de horas trabalhadas.

  Em minha exposição, vou reivindicar a necessidade de reconhecimento e pagamento pelos serviços ambientais do agricultor. Também solicitar que os sistemas de certificação (sociais e ambientais) sejam consolidados e racionalizados, para facilitar a sua execução pelos agricultores. Finalizo a preleção elencando inúmeras oportunidades de parcerias e investimentos internacionais no Brasil, como na infraestrutura, na logística e na inovação tecnológica, alavancando empregos e renda no interior do Brasil.

 

 

Energia e Clima
Decio Luiz Gazzoni

Como já comentei nesta coluna, na semana passada realizou-se, no México, a reunião anual do ICSU, propondo integrar as iniciativas de energia renovável entre os continentes, e focando no incremento da sua participação na matriz energética mundial. Coube-me proferir a Conferência de abertura, e a de encerramento ao Dr. Mario Molina, professor do Massachussetts Institute of Technology e Prêmio Nobel de Química, que o recebeu por haver descoberto o "buraco" de ozônio sobre a Antártida e os efeitos dos CFCs sobre a camada de ozônio.

  Sua palestra versou sobre a relação entre as Mudanças Climáticas Globais (MCG) e a energia. Entretanto, o ponto que mais chamou a atenção em sua preleção foi uma pesquisa social, a respeito da opinião de pessoas sobre as MCG. Do total dos cientistas entrevistados, 98% acreditam que o clima está mudando, sendo, em sua esmagadora maioria, especialistas em meteorologia ou áreas conexas respaldando sua opinião em fatos e números. Por outro lado, 94% dos 2% de cientistas que refutam as MCG não são estudiosos do tema.

 

O estudo evidenciou que quase metade da população em geral não crê nas MCG. O que ocorreu quando este grupo foi instado a justificar a opinião? a) não sabia o que dizer; b)referia-se aos 2% dos cientistas que não acreditam nas MCG; c) repetia a opinião de leigos, sem fundamentação. A conclusão foi que os meios de comunicação, pelo dever ético de conferir oportunidade, em igual proporção a cada um dos lados, sem querer exacerba a participação de leigos e cientistas não vinculados ao tema, diminuindo o peso dos cientistas que se dedicam a estudar as MCG. Como o cidadão comum não muda seu comportamento porque, daqui a 50 anos, a vida no planeta vai ficar muito difícil, ele prefere acreditar em quem fala o que lhe é mais conveniente. Como tal, não muda seu estilo de vida, e não pugna por mudanças que mitiguem as MCG.   Sem entrar no mérito do tema, confesso que fiquei perplexo e estou refletindo sobre este fato até hoje. Como proceder: quem sabe continuar dando voz a ambos os lados, porém salientando muito bem a qualificação e o conhecimento de quem emite opinião sobre um assunto, para conferir a devida importância a quem entende do tema.

 

 

Future Earth
Décio Luiz Gazzoni

Future Earth (em livre tradução, o Planeta do Futuro) é uma iniciativa do International Council for Science (ICSU), que congrega as Academias de Ciências de todos os países. Trata-se de uma plataforma, com horizonte temporal de 10 anos, que ambiciona desenvolver o conhecimento para responder de forma eficaz aos riscos e oportunidades das mudanças ambientais globais, e para apoiar a transformação para a sustentabilidade global nas próximas décadas.   A Future Earth mobilizará milhares de cientistas, em praticamente todos os países do mundo, reforçando as parcerias com os formuladores de políticas públicas e lideranças civis, públicas e corporativas, para oferecer opções e soluções de sustentabilidade na esteira da Eco 92 e da Rio +20.

As principais diretivas da plataforma serão:

  a) pesquisa com soluções orientadas para a sustentabilidade, com foco nas mudanças ambientais e nos desafios do desenvolvimento para satisfazer as necessidades humanas por alimentos, água, energia e saúde;
b) colaboração interdisciplinar efetiva entre ciências naturais, sociais e humanas, economia e desenvolvimento de tecnologia, para encontrar as melhores soluções científicas para problemas que são, por natureza, complexos e multifacetados;
c) informação efetiva para autoridades governamentais, gerando o conhecimento que apoiará avaliações integradas globais e regionais;
d) participação de autoridades, cientistas, comércio e indústria e outros setores da sociedade civil na elaboração e execução conjunta de programas de investigação e formação do conhecimento, sempre que possível redundando em inovações que apoiem o desenvolvimento sustentável;
e) aumento da capacitação em ciência, tecnologia e inovação, especialmente em países em desenvolvimento e engajamento de uma nova geração de cientistas em torno do eixo do desenvolvimento sustentável.
 

Na reunião que realizamos no México, decidimos que os cientistas membros do ICSU, envolvidos com o segmento de energia renovável, abdicarão de sua iniciativa autônoma, aderindo à plataforma maior do Future Earth. Trata-se de uma atitude pioneira pois, juntamente com os cientistas que estudam desastres naturais, constituímos o embrião da plataforma.

 

 

Pinhão-manso
Décio Luiz Gazzoni

Há uns 10 anos ouço com alguma frequência: "Doutor, o que o senhor acha do plantio de pinhão-manso?". Pacientemente, explico que a planta não está domesticada, portanto sem condições de cultivo comercial extensivo. Seu uso restringe-se a cercas-vivas em propriedade rurais, e para produzir óleo usado em lampiões e similares. Uma consulta à base de dados da FAO demonstra não existir um hectare de plantio comercial de pinhão-manso efetivamente estabelecido no mundo, apesar de todos os incentivos que esta planta recebeu de governos e outras organizações.   Para sair desse estágio rudimentar e enfrentar a disputa acirrada do mercado, há um longo caminho a ser trilhado, até que a planta seja domesticada, com a incorporação de características que permitam ser cultivada em condições de competitividade. A primeira imposição é produzir variedades diferenciadas, atualmente inexistentes. Falo variedades, no plural, porque qualquer cidadão minimamente informado sabe que um investimento agrícola, que demande milhares, quiçá milhões de hectares, necessita de uma base genética ampla, para reduzir o risco de frustrações.

 

Resolvidos os problemas genéticos - baixa produtividade, desuniformidade na maturação, toxidez e alergogenicidade, entre inúmeros outros - iniciará uma nova etapa para desenvolvimento do sistema de produção, como arranjos de plantas, nutrição vegetal, irrigação ou controle de pragas. Isto posto, há necessidade de organizar setores complexos, como logística, infraestrutura e outras demandas da cadeia produtiva. Tudo resolvido, alguém precisa comprar e processar o produto, colocando-o junto a outras empresas que os utilizem, o que também não é tarefa simples. Lembremo-nos que existe um mercado, com demandas associadas de óleo e proteína, amplamente dominado por oleaginosas como soja, girassol ou canola, que são cultivos tradicionais, solidamente estabelecidos.

  Mais recentemente, quando a pergunta me é feita, acrescento à resposta: "Se, após ouvir o que falei você decidir plantar pinhão-manso, faça-o com seus próprios recursos, não ponha em risco o sagrado dinheiro dos impostos dos brasileiros, ou o investimento de terceiros de boa fé."

 

Planeta sustentável
Décio Luiz Gazzoni

Em abril passado comentei, neste espaço, um projeto futurístico do Conselho Internacional de Ciências, denominado Future Earth, voltado para a indução de inovações científicas e tecnológicas com foco no desenvolvimento sustentável. O projeto começou a ganhar forma em uma reunião que realizamos no México e aumentou sua musculatura em outra reunião realizada no Rio de Janeiro. Hoje estou em Nairobi, Quênia, participando de uma reunião de caráter operacional, com o objetivo de elaborar uma agenda de ciência e tecnologia para a África, com fulcro na sustentabilidade das atividades econômicas. Particularmente, estarei diretamente envolvido com o segmento da geração de energia sustentável, tanto para abastecer o continente quanto para exportação.  

A experiência setorial brasileira e latino-americana será importante para orientar um planejamento estratégico de médio e longo prazo, especialmente no tocante à agroenergia (bioetanol, biodiesel, biogás e bioeletricidade), além dos avanços ponderáveis que estamos obtendo em geração de energia eólica e solar, em nosso continente. Em especial na porção da África que se situa ao sul do deserto de Sahara, existe um potencial de produção agropecuária que está longe de ser devidamente utilizado. A partir da bem sucedida experiência brasileira, e posta a similaridade de condições entre o Brasil e a parte sul da África, é possível elaborar um planejamento estratégico, de longo prazo, que, entre outros aspectos, contemple a produção de alimentos e fibras, conjuntamente com a produção de matéria prima para a indústria de biocombustíveis. Entretanto, ainda existem algumas demandas elementares a serem atendidas na África, como a melhoria dos fogões à lenha, ainda amplamente utilizados, e que são responsáveis por muitos acidentes e doenças respiratórias.

  Os institutos e agências científicas e tecnológicas do continente africano poderão se beneficiar em larga escala dos avanços e dos sucessos obtidos em outros países, em condições similares. Dada a pobreza endêmica do continente, e as dificuldades de executar um projeto amplo na área de Ciência e Tecnologia, o aporte de experiências bem sucedidas alhures será de grande valia para a sociedade africana.

 

 

A bigorna logística
Décio Luiz Gazzoni

Há 45 anos, estudante universitário, saboreava o didatismo de mestres que falavam da teoria do barril ou da corrente: Nenhum barril comporta mais que seu gomo mais alto; nenhuma corrente é mais forte que seu elo mais fraco. Há oito anos, meu amigo Roberto Rodrigues vaticinou: dia virá em que viveremos um apagão logístico.  

Não tão sábio quanto meus ídolos, tento ser original: a logística e a infraestrutura do país são a bigorna que impedem a expressão do potencial do agronegócio. Na minha mente, o apagão logístico de Roberto se materializa na fila de caminhões de soja começando no porto de Paranaguá e terminando em Ponta Grossa – soja armazenada em carrocerias! Sem qualquer dúvida, o Custo Brasil é o maior limitador da realização do potencial do agronegócio brasileiro, e seu carrasco mais visível é a logística. O suplício começa nas estradas rurais abandonadas pelas prefeituras, continua pelo lastimável estado das estradas asfaltadas (estreitas, esburacadas e saturadas), passa pela ridícula malha ferroviária e ausência de hidrovias e acaba no caos dos portos.

 

Se dependesse só do agricultor, os 185 milhões de toneladas (Mt) de grãos colhidos em 2013 seriam 350 ou 400 Mt. O mata-burros é o gargalo logístico que, no primeiro instante, cobra preços exorbitantes pelo frete; e, no segundo, por saturação, é inelástico em relação ao preço. Não fora a precariedade logística e exportaríamos o dobro das 25 Mt de milho previstas para 2013 e, também, mais soja, carne e açúcar, gerando mais renda e empregos.   É meridiana a diferença entre o agricultor e a infraestrutura: Em 2013, respondendo aos sinais do mercado, o produtor aumentou em 3 milhões de hectares (Mha) a área de soja e vai colher 5 Mt de milho a mais. Por outro lado, no início de março de 2013, eram 82 navios na fila, esperando para carregar grãos em Paranaguá. Fila estimada em 50 dias, podendo chegar a 60, impensável em qualquer país sério! O custo médio de demurrage (multa paga ao fretador por atraso) de um navio parado, esperando carga, é de US$ 30 mil por dia – equivalente a 60 t de soja. Lembremo-nos da lição do Presidente Lula: quem tem fome tem pressa!   Segundo exportadores, para evitar os 50 dias de fila de espera em Paranaguá, os caminhões são desviados para Rio Grande, onde as filas duram menos de dez dias. Não bastassem os 2.500 km entre Mato Grosso ou Bahia e Paranaguá, estica-se mais 1.000 km até Rio Grande – para ser mais rápido, embora mais longe da Europa! Para pagar a multa dos 50 dias seriam necessárias 3.000 t de soja, mais de 4% da carga do navio, mais que a produção de 1.000 hectares, evaporados à conta do Custo Brasil.

 

  Lamento informar aos jovens deste Brasil, ávidos por um futuro e por oportunidades que poderiam ser alavancadas pelo agronegócio: chegamos ao limite! Alicerçado em inúmeras vantagens comparativas, como solo, clima, tecnologia e empresários eficientes, nosso agronegócio as vê esterilizadas, impedindo o país de concretizar seu potencial de ser o protagonista em escala global, abortando sua contribuição para um mundo socialmente mais justo e ambientalmente sustentável.  

 

Desperdício de alimentos
Décio Luiz Gazzoni

Neste mesmo espaço, já discuti o desafio de alimentar 9,5 bilhões de pessoas, daqui a 40 anos. Quero abordar outro ângulo da questão, não tão discutido quanto o anterior: o desperdício de alimentos. Afora as perdas que acontecem antes da colheita, até 50% do alimentos do mundo é perdido no caminho entre a lavoura e a mesa do consumidor, segundo um estudo recente do Instituto de Engenheiros Mecânicos da Inglaterra. Como a estimativa é de que necessitaríamos produzir mais 60% de alimentos até a década de 2050, grande parte do caminho poderia ser trilhada com a redução de desperdícios, com o bônus de pressionar menos os recursos naturais como terra, -água, energia e fertilizantes.

  Em países ricos, os sistemas de logística e práticas de marketing dos supermercados são delineados de maneira a que os produtos perecíveis permaneçam o menor tempo possível em exposição na loja, para reduzir o desperdício. Entretanto, devido às rígidas especificações cosméticas, de cor, forma ou tamanho, até 30% das colheitas são condenadas ainda no campo, gerando enorme desperdício.

 

Nas sociedades menos desenvolvidas, onde as barracas são o principal mercado para produtos alimentares, as taxas de desperdício no varejo são consideravelmente maiores, e os padrões de desperdício doméstico variam drasticamente entre famílias rurais e urbanas. As famílias rurais são obrigadas a armazenar alimentos básicos ao longo do ano, logo seria de vital importância que as perdas fossem mínimas. Mas as instalações de armazenamento são primitivas, muitas vezes permanecendo inalteradas por gerações, e sujeitas a ataques de roedores, insetos e fungos. Em áreas urbanas, entre a população pobre, não é incomum as famílias comprarem comida duas ou até três vezes ao dia. Logo o desperdício é reduzido a um mínimo quando ocorre compra de comida suficiente apenas para o dia, ou até mesmo para a refeição.   A maior incongruência ocorre nas sociedades mais "avançadas", onde as maiores quantidades de alimento são desperdiçadas diretamente na relação de varejo com o consumidor, no consumo doméstico ou em restaurantes. As razões variam desde a embalagem ligeiramente amassada, uma fruta ruim em um saco, porque a fruta amadureceu muito cedo, ou devido a que uma única folha de alface está danificada, em toda a peça.  

De acordo com o estudo referido anteriormente, da quantidade que chega às prateleiras dos supermercados, 30-50% é jogado fora pelo comprador final, em sua casa, normalmente por estar próximo ou haver passado a data de vencimento. A rotulagem de muitos alimentos pode realmente incentivar o desperdício, pois os consumidores confundem as expressões "melhor consumir antes" e "usar até". Além do que, essas datas em geral são muito conservadoras, buscando livrar o varejista de qualquer cominação legal.

 

É comum nos restaurantes que os pratos sejam mais que generosos, ou que os bufes de "self service" provoquem desperdício de alimentos que não podem ser reaproveitados. Finalmente, outra razão muito importante é o fato de o consumidor ser seduzido por ofertas do tipo "pague 2 leve 3", comprando mais alimentos do que pode consumir.   Ou seja, temos muito que fazer para evitar desperdícios, antes de pensar em simplesmente produzir 60% mais alimentos.

 

 

Biodiesel, qualidade do ar e impacto na saúde
Décio Luiz Gazzoni

Introdução

Uma consulta à literatura científica permite recuperar diversos estudos a respeito dos efeitos negativos para a saúde da exposição aos gases da combustão do diesel de petróleo. Por outro lado, o biodiesel surge no senso comum como um combustível alternativo 'verde', mais amigável ao ambiente, especialmente no que diz respeito à redução de material particulado nas emissões do escapamento. Resultados de estudos de emissões de motores pesados, de ciclo diesel, utilizando alternativamente diesel e biodiesel, fornecem informações importantes sobre a composição e o potencial de emissão de partículas e outros poluentes para a atmosfera. Na maioria dos estudos, as emissões totais de biodiesel são menores que aquelas do petrodiesel, embora estudos individuais discordem em alguns aspectos desta conclusão abrangente.

 

  A revisão de literatura permite contrastar os resultados de emissões comparativas quando motores diesel funcionam com petrodiesel puro ou misturas de petrodiesel e biodiesel. Porém, os estudos de exposição a estas emissões, e seu impacto sobre a saúde humana, são mais abrangentes com petrodiesel do que com biodiesel. Detalhes do impacto de algumas substâncias em particular, como formaldeído, acetaldeído, benzeno e outros ainda apontam lacunas de conhecimento, ou conflitos de conclusões, conforme atestaram Lapuerta et al., que não vislumbraram nenhuma tendência real na literatura revisada, em relação a emissões de aldeídos e outros compostos quando utilizando biodiesel. Em um estudo foi verificado que o aumento da percentagem de mistura do biodiesel provocava diminuição das emissões de formaldeído, 1,3-butadieno, tolueno, xileno e acetaldeído, ao tempo em que aumentavam as emissões de benzeno. Resultado similar foi obtido em um trabalho que verificou menores emissões de formaldeído e acetaldeído, quando foi utilizado B20. De forma conflitante, outra investigação indicou aumento significativo na presença de formaldeído, acetaldeído e acroleína em emissões quando o combustível utilizado foi B100.

 

Alguns autores consideram que o uso de biodiesel aumenta as emissões de oxidos de nitrogênio (NO), cuja exposição pode ter efeitos negativos para a saúde humana. No entanto, outros investigadores mostraram que as emissões de NO são altamente variáveis entre os tipos de motores, e que pode não haver aumento líquido da emissão do NO, utilizando uma mistura de B20. Esta contradição indica que, mesmo em áreas de conhecimento onde se considerava o tema devidamente clarificado, há necessidade de mais pesquisas para estabelecer conclusões definitivas. Os novos estudos devem incluir a caracterização das propriedades químicas, físicas e biológicas de partículas e gases de biodiesel, tanto em laboratório quanto em ambientes de trabalho ou de campo aberto. Estes estudos sobre emissões e exposição são necessários para o desenvolvimento de uma compreensão mais completa dos possíveis impactos potencial do biodiesel na qualidade do ar e na saúde humana, que permita tomar decisões sobre a ampliação de seu uso, com mais segurança.

  Em contraste com as emissões, a exposição - definida como o contato humano com as emissões de gases de escape -, que é um elo fundamental na cadeia entre emissões e efeitos na saúde humana, é muito pouco estudada. Embora existam inúmeros estudos de emissões de diesel, as investigações específicas de exposição das emissões do biodiesel são escassas na literatura científica.   Alguns autores, como Nora Traviss analisaram e consolidaram os resultados disponíveis acerca do tema, envolvendo tanto emissões quanto exposição e, igualmente, encontraram escassez de estudos em algumas áreas e contradições entre as conclusões de diferentes estudos. O presente artigo tem o objetivo de analisar os resultados mais recentes, contribuindo para a discussão da expansão do consumo de biodiesel no Brasil, como forma de redução dos impactos sobre a saúde humana e sobre o ambiente.

 

Diesel e saúde

As emissões da combustão do diesel incluem material particulado (MP) ultrafino (<0,1 µm), fino (<2,5 µm), e partículas de maior dimensão, além de compostos voláteis como óxidos de nitrogênio (NOx), de enxofre (SO2), carbonilas e outros compostos orgânicos, tais como hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HPs ou PAHs, na sigla em inglês). Moléculas de HAPs contendo mais de cinco anéis e nitro-HAPs, muitas delas com propriedades mutagênicas e carcinogênicas, podem ser adsorvidas na superfície dos particulados (MP), onde também são encontradas pequenas quantidades de metais, o que pode significar impacto deletério sobre a saúde do homem e de animais. A revisão da literatura indica que as características químicas e físicas das emissões da combustão do diesel dependem do tipo de motor, da sua regulagem, da qualidade do combustível, das condições de funcionamento e dos processos de transformação que ocorrem quando as emissões são liberadas na atmosfera

 

Estudos realizados nos EUA estimaram que a contribuição da emissão de materiais particulados (MP) de motores diesel, para o total de MP do ambiente, com tamanho menor que 2,5 µm (chamado de PM2,5) atinge 6% na média nacional, com picos de 10 a 36% em algumas áreas urbanas na Califórnia, Colorado e Arizona. Efeitos negativos para a saúde, associados à exposição a MP, incluem redução da função pulmonar, exacerbação da asma, arritmia, hipertensão e, consequentemente, maiores taxas de mortalidade. Uma ampla revisão epidemiológica da pesquisa in vivo e in vitro sugeriu que a exposição a emissões veiculares pode ser um importante fator ambiental para a mortalidade e a morbidade associadas a causas cardiopulmonares, nos EUA. Uma revisão da literatura epidemiológica conduzida por Pope et al. indica que a exposição baixa a moderada (5-50 µg/m3) de MP2,5 resulta em uma curva da exposição-resposta que é muito acentuada e quase linear, levando os autores a sugerir que pode não haver nível seguro de exposição a particulados.

 

Cientistas que atuam em saúde pública estão preocupados com o desenvolvimento de câncer e com os efeitos não oncológicos da exposição às emissões de diesel. Um recente estudo epidemiológico envolvendo mineiros em ambientes subterrâneos concluiu que existe um aumento do risco de mortalidade por câncer de pulmão associado com exposição às emissões de diesel. Um estudo de trabalhadores em ferrovias, com exposição ocupacional às emissões de diesel, indicou elevada mortalidade por câncer de pulmão. Com base nesses e em outros estudos científicos, as agências reguladoras dos EUA estabeleceram que as emissões de diesel representam um "potencial fator cancerígeno ocupacional" para os seres humanos, devido à sua inalação a partir de exposições no ambiente cotidiano.  

Estudos recentes também associaram as emissões de MP do diesel com o estresse oxidativo celular e com respostas pró-inflamatórias. O aumento da atividade reativa do oxigênio, ou da expressão de citoquinas inflamatórias, foram relatadas a partir de estudos in vitro de emissões de MP de diesel, relacionadas com o tráfego. De acordo com Araújo, a toxicidade cardiopulmonar parece correlacionar-se com o potencial oxidativo e inflamatório das emissões de MP do diesel. Autores como Cheung afirmam que os metais presentes no MP também podem desempenhar um papel incremental no potencial oxidativo das emissões do diesel.

 

Biodiesel x diesel

Reduzir o impacto das emissões do diesel de petróleo sobre a saúde pública é um objetivo a ser perseguido por políticas públicas, voltadas à saúde e ao ambiente, tanto no Brasil quanto em qualquer outro país. Encaixam-se nesse objetivo os avanços tecnológicos como diesel com concentrações baixas de enxofre, filtros de particulados do diesel, catalisadores de oxidação e melhorias na tecnologia de motor, assim como a substituição por combustíveis menos poluentes.  

Nos EUA, os motores a diesel mais modernos são projetados para produzir emissões muito mais limpas, assim como, desde 2004, estão previstas melhorias de motores estacionários, que devem ser implantadas a partir de 2014. Estas inovações e imposições legais melhoraram a qualidade do ar nos EUA, na última década, reduzindo especialmente as concentrações de SOx, NOx e MP. No entanto, a preocupação dos americanos é com a vida útil dos motores de ciclo diesel, que podem ultrapassar 20 anos, de maneira que modelos mais antigos ainda estarão em uso na próxima década. Por esta razão, combustíveis alternativos que podem reduzir as emissões, de imediato, passam a ser de grande interesse.

 

Hill et al. concluíram que o biodiesel de soja em comparação com o diesel, produz 93% mais energia do que aquela que foi usada em sua cadeia produtiva, e reduz as emissões de gases de efeito estufa em 41%. No entanto, o consumo de biodiesel no motor é mais elevado, principalmente devido ao poder calorífico inferior mais baixo, maior densidade e maior viscosidade, apesar do número de cetano mais elevado. Maior viscosidade está associada com pior atomização de injeção de combustível, o que pode afetar o desempenho em locais de baixa temperatura, bem como as suas emissões. Este não é o caso do Brasil, predominantemente tropical e subtropical, com regiões restritas em épocas curtas, onde pode ocorrer frio intenso.

 

Biodiesel x qualidade do ar

Numerosos estudos têm demonstrado que a combustão do biodiesel, comparada ao diesel de petróleo, reduz as emissões de MP, CO e hidrocarbonetos totais. A redução do MP é associada com o maior teor de oxigênio do biodiesel e a ausência de hidrocarbonetos aromáticos e de enxofre, conforme os estudos de Xue et al, Mc Cormick et al, La Puerta et al., já referidos na nota (21). No entanto, outros pesquisadores observaram aumento do MP em emissões de biodiesel, em veículos de passeio, sob determinado tipo de biodiesel e de mistura, bem como das condições de funcionamento do motor. A utilização de biodiesel proveniente de ácidos graxos mais saturados, ou oxidados, além de partida a frio, resultou em maiores emissões de MP no escape, de acordo com Fontaras et al. e Bakeas et al.

  A análise dos estudos referidos acima mostra que múltiplos fatores são fundamentais para a compreensão do impacto do biodiesel na qualidade do ar e na saúde humana. Apesar de misturas de biodiesel em geral, reduzirem a massa total de MP nas emissões, em comparação com o diesel de petróleo, os estudos referidos acima sugerem que o biodiesel pode aumentar a concentração de partículas ou diminuir o tamanho de partícula. Já, outros investigadores concluíram o oposto, ou seja, que o uso do biodiesel redunda em menor número de partículas emitidas. Alguns pesquisadores descobriram maiores concentrações de metais em MP de biodiesel, sugerindo maior toxicidade, enquanto outro estudo mostrou teores semelhantes de metais nas emissões tanto de petrodiesel quanto de biodiesel.   No que diz respeito ao impacto sobre a saúde, com a diminuição da dimensão das partículas ocorre um aumento na eficiência de deposição nos alvéolos pulmonar; partículas menores, com menos massa total, podem penetrar mais profundamente no pulmão e, potencialmente, apresentar riscos mais significativos para a saúde. Avaliar a composição da MP em relação à presença de substâncias orgânicas, HAP e metais também fornece informações importantes sobre a sua toxicidade. Lembrando que os HAPs são reconhecidos agentes cancerígenos, e que metais desempenham um papel fundamental na atividade reativa do oxigênio, associada às respostas inflamatórias do organismo.

 

A fração orgânica solúvel (SOF, na sigla em inglês) do MP do biodiesel é normalmente maior do que a SOF do MP do diesel, mas a sua composição e o impacto sobre a saúde não estão claramente estabelecidos. Estudos recentes de emissões de motores a diesel concluíram que o uso do biodiesel misturado ao diesel diminui a fração total de HAP e de HAP nitro (tanto na fase gasosa quanto em partículas), assim como de MP com HAPs adsorvidos na sua superfície. Resultados como esse indicam que a mistura de biodiesel, reduzindo a exposição à HAP, pode ser benéfica para a saúde humana, se comparada ao uso exclusivo de petrodiesel.

  Além dos estudos epidemiológicos ou em condições de campo aberto, a literatura também registra inúmeras investigações laboratoriais do impacto do biodiesel na saúde, os quais avaliam as respostas biológicas em modelos celulares e animais. Em um desses estudos, foi verificado que o SOF do MP do biodiesel pode produzir uma resposta inflamatória mais potente de células epiteliais das vias respiratórias humanas que o petrodiesel. Entretanto, estudo conduzido por Cheung e colaboradores concluiu que o potencial oxidativo de MP do biodiesel e do petrodiesel, emitido por um motor de automóvel, foi semelhante. Um estudo envolvendo parâmetros toxicológicos (inflamação, citotoxicidade, genetoxicidade e estresse oxidativo) causados por emissões de partículas de um motor estacionário, operando sob diferentes configurações (proporção de mistura diesel / biodiesel; regulagem do motor; presença e ausência de catalisador) mostraram menor impacto com o aumento da mistura de biodiesel, ou, em alguns casos, efeitos similares.

 

As diferenças de conclusões entre trabalhos de campo e modelos de laboratório indicam a necessidade de uma discussão crítica aprofundada acerca da metodologia e das condições dos estudos toxicológicos, antes de serem utilizados para a tomada de decisão em relação a políticas públicas.

Exposição ao biodiesel

A exposição a um agente é definida como o contato entre um composto químico, um fator físico ou um organismo com um alvo. No caso de estudos de saúde humana, o alvo seria uma pessoa. A exposição é considerada como um passo intermediário na seguinte sequência: fontes de poluentes, movimentação de poluentes, exposição, e impactos na saúde. A avaliação de cada etapa deste modelo conceitual de risco é fundamental para a compreensão do impacto global do biodiesel na qualidade do ar e da saúde.

  Enquanto a maioria dos estudos de emissões de biodiesel sugere melhoria da qualidade do ar, e eventuais benefícios para a saúde humana, em decorrência das reduções de MP e dos teores de hidrocarbonetos, estudos de exposição ao biodiesel, que ratificariam esta associação, são mais difíceis de serem encontrados na literatura. Os estudos de emissões de gases de escape ajudariam a elucidar o primeiro passo do modelo conceitual acima exposto (fonte de poluentes), mas não necessariamente permitiria concluir se a redução das emissões de gases de escape de biodiesel resultaria em reduções de exposição no local de trabalho ou de pessoas próximas ao ambiente onde ocorre a emissão, e qual seria o seu impacto na saúde humana.   Uma série de avaliações de exposição ao diesel, em diversas áreas ocupacionais, foram realizadas ao longo das últimas duas décadas. Uma brilhante revisão dessa literatura foi efetuada em 2009 por Pronk et al. A revisão mostra que a maioria dos trabalhadores como motoristas, mecânicos e operadores de equipamentos normalmente experimentam exposições ao MP de diesel consideravelmente mais elevados que o público em geral. Infelizmente, pouco se sabe sobre o impacto do uso de biodiesel em exposição em ambientes ocupacionais, devido à ausência de estudos similares aos que foram efetuados com petrodiesel.

 

A literatura indica emissões medidas no escapamento de motores estacionários, utilizando B20, sendo 10 a 24% inferiores ao petrodiesel. Entretanto, quando o estudo é conduzido em condições de estrada, com misturas B20 ou petrodiesel, usando moto niveladoras executando várias atividades rotineiras, foi verificado que a emissão de MP foi reduzida entre 8 e 48%, com o uso de B20. Embora em ambos os casos a redução tenha favorecido o uso do biodiesel, as condições rotineiras de operação indicam maior amplitude e um pico de redução mais elevado.

 

Bugarski et al, avaliou o uso de misturas de biodiesel em um motor estacionário de 56 HP, sob condições variáveis, simulando um ambiente subterrâneo, como ocorre em minas. O aumento do percentual de mistura de B50 a B100 diminuiu a fração de carbono elementar e aumentou a fração de carbono orgânico. Os autores concluíram que, aumentando o teor de biodiesel na mistura, pode ocorrer um aumento da fração orgânica ligadas ao PM.

  Estudos conduzidos por Traviss e equipe contrastaram perfis de exposição de B20 e petrodiesel em área de trabalho e nas proximidades, em uma instalação de recuperação de materiais que utiliza equipamentos pesados estacionários. O uso de B20 significou reduções significativas na emissão de MP2,5 (redução de 56 a 76%), redução da emissão de carbono elementar (5 a 29%) e aumentos consideráveis de emissões de carbono orgânico (294 a 467%). Nesses estudos as concentrações de carbono orgânico aumentaram significativamente, embora os autores indiquem serem as mesmas comparáveis aos níveis relatados em avaliações de exposição a diesel, por outros autores

 

Com relação ao impacto do diesel sobre a saúde humana, um trabalho realizado pela equipe do Prof. Paulo Saldiva, da USP, mostrou que a análise das emissões de combustíveis é crucial para a compreensão da patogênese da mortalidade causada pela poluição do ar. O objetivo do estudo foi avaliar a toxicidade cardiovascular e inflamatória de partículas emitidas pela combustão de diesel e de biodiesel. Para o estudo foram utilizados ratos expostos aos combustíveis por uma hora. A frequência cardíaca, sua variabilidade e a pressão arterial foram obtidas antes da exposição, bem como 30 e 60 minutos após a exposição. Após 24 h, lavado broncoalveolar, sangue e medula óssea foram recolhidas para avaliar a inflamação. O tratamento com B100 diminuiu os seguintes parâmetros de emissão: massa, negro de carbono, metais, CO, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e compostos orgânicos voláteis em comparação com o B50 e com o diesel. As diferenças no intervalo de batimento cardíaco aumentaram com diesel em comparação ao controle; a baixa frequência de batimentos cardíacos aumentou tanto com diesel quanto com B100, em comparação com o controle. O número de leucócitos aumentou com B50 em comparação com diesel; a concentração de plaquetas aumentou com B100 em comparação com diesel e com o controle; os reticulócitos aumentaram com B50 em comparação com diesel, controle e B100; o número de metamielócitos aumentou com B50 e B100 em comparação com diesel e o de neutrófilos aumentou com diesel e B50 em comparação com o controle, aumentando os macrófagos com diesel B50 e B100 em comparação com o controle. Os autores concluíram que o biodiesel foi mais tóxico do que o diesel porque promoveu alterações cardiovasculares, assim como inflamação pulmonar e sistêmica.

  Como referido anteriormente, as operações no mundo real podem produzir emissões de biodiesel com perfis muito diferentes do que o previsto pelos protocolos de testes padronizados de motor, o que resulta em condições diferentes de exposição, bem como diferentes impactos sobre a saúde humana. Este fato torna mais complexa a compreensão do efeito da exposição, se cotejadas as condições de laboratório com ambientes de trabalho ou na comunidade em geral. Em suma, vale o alerta efetuado no início deste artigo, sobre a necessidade premente de estudos abrangentes e conclusivos sobre emissões, exposição e impactos do biodiesel sobre a qualidade do ar e a saúde humana, comparativamente ao petrodiesel.

 

 

Dez perguntas chave
Décio Luiz Gazzoni

Em abril de 2013 presidi a reunião do International Council for Science, que congrega as Academias de Ciências dos diferentes países. Nesta condição, fiz a conferência de abertura do evento, escolhendo como tema as dez perguntas mais polêmicas, e que necessitam ser adequadamente respondidas, para entender os rumos futuros da energia renovável.   É importante considerar que a tendência de médio e longo prazo é o aumento da participação de energias renováveis na matriz energética, entre elas o biodiesel. Porém, para cada boa notícia – uma oportunidade – existe uma má notícia – uma ameaça – que precisa ser convenientemente administrada para extrair dela as ameaças possíveis, ao se dispor da informação antecipada. A notícia não tão boa é que outras energias renováveis, em especial a eletricidade e o biohidrogênio, serão fortes competidores do biodiesel nas próximas décadas. Por este motivo é muito importante entender como será a trilha da energia renovável, no futuro.  

Para cada uma das perguntas abaixo elencadas procurei sintetizar a polêmica e a controvérsia em torno do assunto, finalizando com minha opinião. Para responder a estas perguntas, considerei como premissas:

As principais perguntas que devem ser respondidas são:

I. Quanta energia renovável pode ser gerada de forma sustentável, no médio e no longo prazos?

Em 2012, o mundo obteve 18% de sua energia de fontes renováveis, sendo 8% a partir da biomassa tradicional e 10% de energias renováveis modernas. A biomassa tradicional tem se mantido estável nos últimos anos, com tendência a diminuir, enquanto a parcela moderna vai continuar aumentando. Há vinte anos, as projeções mais confiáveis, como as da Agência Internacional de Energia (AIE), previam que a proporção de energia renovável moderna na matriz energética mundial situar-se-ia entre 5 e 10%, no longo prazo.   Entrementes, por efeito das políticas públicas e do desenvolvimento tecnológico dos últimos 15 anos, essas projeções iniciais já foram superadas, e mais da metade de toda a nova capacidade de energia elétrica adicionado em todo o mundo, a partir de 2011, é renovável. Um dos primeiros cenários a capturar a revolução das energias renováveis, no final dos anos 90, foi o "Sustainable Growth" da Shell Oil Company, estimando uma quota de 50% em 2050, o que chocou muitas pessoas à época. Em seguida, a AIE divulgou um relatório denominado "Energia para 2050: Cenários para um Futuro Sustentável", com previsão de 35% de participação de fontes renováveis.  

Em meados da década passada, surgiu um número maior de cenários mostrando participações de 30-50% de renováveis na matriz energética mundial, no médio e longo prazos. Entre estes estava o Energy Technology Perspectives da AIE, com um conjunto de cenários denominados "Accelerated Technology", prevendo valores nesta faixa, para 2050. Já nesta década, o Conselho Assessor Alemão sobre Mudanças Globais publicou o seu cenário denominado "Exemplary Pathway", projetando uma participação de 50% para 2050, valor semelhante ao cenário de Revolução Energética do Greenpeace, da mesma forma que o Conselho Europeu de Energia Renovável.

 

  A resposta mais provável para essa questão é que a participação das energias renováveis na matriz energética vai crescer a taxas mais elevadas do que a energia convencional, sendo estas mais intensas próximo a 2050, quando a participação de 40% de renováveis na matriz energética, embora possa revelar-se conservadora, é razoável e possível.  

 

II. A energia renovável é mais cara?

Historicamente, os debates giram em torno de comparações de custos entre as tecnologias individuais, ou de competitividade de custos. Eu entendo ser necessário fazer comparações econômicas sólidas entre alternativas concorrentes.   Normalmente, esta questão é abordada de forma que o custo expresso em centavos de dólar por quilowatt-hora, responde pelo investimento direto, custo de combustível, operação e manutenção, além dos custos de capital ou juros. Devemos levar em conta que um sistema altamente distribuído custa quase o mesmo que uma versão totalmente centralizada, mas oferece melhor mitigação de riscos de interrupção e outros choques econômicos e ambientais.

No entanto, visualizo deficiências na abordagem convencional, que não leva em conta alguns fatores, em especial:

  Em conclusão, quando as externalidades são calculadas e incluídas no preço da energia, e a racionalização é maximizada, os custos de energia a partir de fontes convencionais e renováveis tendem para os mesmos valores, no médio prazo, e, provavelmente, favorecerão as energias renováveis, no longo prazo.  

 

III. Qual é o papel futuro das políticas públicas?

Diversas políticas públicas foram adotadas para estimular a energia renovável, entre 1995 e 2005. Nos últimos sete anos houve uma intensificação do processo, e o número de países com políticas de apoio dobrou, passando de 55 para 120.

  Essas metas e suas políticas de apoio continuarão a exercer uma forte influência nos anos e décadas seguintes. Além disso, como as energias renováveis se tornam mais integradas com a infraestrutura existente, os formuladores de políticas enfrentarão a necessidade de novas políticas para adequar essas várias formas de integração, tais como:

  A minha resposta a esta pergunta é que as políticas públicas, abordando diretamente a energia renovável, ou interfaceando o assunto, como políticas ambientais ou sociais, continuarão desempenhando um papel importante para incrementar o uso de energia renovável.  

 

IV. Qual será o papel das energias renováveis para mitigar as mudanças climáticas globais?

Primeiramente, temos de considerar que a eficiência do uso de energia, levando à contenção da demanda, é um aspecto crucial para reduzir as emissões do setor de energia, e para facilitar o ingresso de energia renovável na matriz energética. Se a demanda total de energia no futuro for substancialmente reduzida, em relação ao que de outra forma seria, então é mais fácil aumentar a participação de energias renováveis, com menores emissões.  

Um bom indicador da relação entre energia renovável e mudanças climáticas pode ser visualizado no trabalho do IPCC. Em 2011, o IPCC examinou mais de 160 cenários com metas de mitigação do clima, organizados em intervalos de estabilização da concentração atmosférica de CO2, sendo:

 

A proporção de energia renovável estava acima de 50% para a maioria dos cenários próximos a 450 ppm de CO2, e foi de até 77% para algumas concentrações mais baixas. Todos estes cenários consideram energias renováveis como uma ferramenta poderosa para a mitigação das mudanças climáticas.

  Alguns cenários trabalham com redução de emissões, em vez de níveis de estabilização, com grande proporção de energia renovável:

 

  Pessoalmente, considero ser quase impossível alcançar metas ambiciosas de concentração de carbono na atmosfera sem substituir grandes quantidades de combustíveis fósseis por energia renovável.  

 

V. É necessário dispor de tecnologia avançada para o armazenamento de grande quantidade de energia renovável?

O senso comum indica que a grande participação de energia renovável exigiria tecnologias de armazenamento caras, que ainda necessitam de desenvolvimento mais aprimorado. Isto é particularmente verdadeiro em relação à geração intermitente, como a solar ou eólica.   Mas, muitos especialistas discordam dessa visão, afirmando que a ampla gama de opções para gerenciar a variabilidade permite o armazenamento adequado de energia, enquanto a participação de renováveis na matriz variar entre baixa e média. Sua lógica é que a necessidade imediata não é tão grande, pois o problema pode ser equacionado com água ou gás bombeados. Como uma solução lateral, a geração adicional (back-up) pode ser adicionada ao sistema, para compensar a variabilidade em vez de aumentar a armazenagem.

  Como uma resposta pragmática a esta pergunta, podemos dizer que, para os próximos 40 anos, considerando os sistemas integrados e o protagonismo global de fontes de energia convencionais, o sistema pode conviver com o estado da arte da tecnologia de armazenamento de energia. Se a energia renovável for efetivamente dominante após 2050, tecnologia de ponta de sistemas de armazenamento de alta densidade de energia e de baixo custo será necessária, possivelmente até mesmo antes desta data.  

 

VI. Redes de energia centralizada ou descentralizada?

Especialistas do setor, gestores públicos, pesquisadores e outros especialistas têm pontos de vista muito divergentes sobre os sistemas de geração de energia distribuída ou descentralizada, e o grau com que os atuais sistemas de energia centralizada evoluirão para versões mais descentralizada e distribuída. Alguns especialistas em energia acreditam que as redes de gestão centralizada se tornarão relíquias, e imaginam redes menores, redes locais interligadas com as energias renováveis e armazenamento de energia espalhados em pontos estratégicos.   Mas também há a visão oposta, negando que o sistema de energia será semelhante à Internet, posto que a economia favoreceria os sistemas de energia centralizados, tornando os descentralizados mais caros. Entre os dois extremos, há motivações e condições específicas que poderiam favorecer sistemas de energia distribuídos, como restrições para a construção de maior capacidade de transmissão.

 

  Na minha opinião, é provável que o futuro possa ser uma combinação equilibrada de ambos os sistemas, centralizados e distribuídos, com as energias renováveis presentes em todos os níveis e escalas. Sistemas centralizados ainda serão necessários para acomodar os parques eólicos de grande escala, incluindo a energia eólica offshore, juntamente com a CSP. Os sistemas distribuídos serão menos sujeitos a panes e mais fáceis de gerenciar.  

 

VII. Qual será o volume do investimento em energias renováveis?

O investimento global em energia renovável atingiu 290 bilhões dólares em 2011, contra 40 bilhões apenas sete anos antes. De fato, desde 2010, a energia renovável recebeu mais da metade dos novos investimentos na produção de energia em escala global. No entanto, enquanto a maioria dos especialistas em finanças é geralmente otimista sobre as possibilidades de intensificação e extensão das atuais fontes de investimento, para outros provavelmente haverá necessidade de ir além das fontes de financiamento do momento.

 

Os sistemas atuais são apenas escaláveis até um certo ponto, e não suportariam mais de US$ 500 bilhões de investimento anual. Acima deste nível pode ser necessário captar outros investidores institucionais e novas fontes de capital, em pequenas e grandes escalas.

 

Todos os cenários importantes e recentes mostram grandes volumes de investimento em energia renovável, no futuro. Na projeção mais pessimista, o último IEA World Energy Outlook projeta US$6,4 trilhões de investimento em energia renovável, durante os próximos 23 anos, ou uma média de 280 bilhões de dólares por ano. Outros autores, mais otimistas, vão além de US$500 bilhões.

 

 

Em conclusão, haverá investimento maciço em energias renováveis nas próximas décadas, que vão desde a presente inversão anual de US$290 bilhões até valores otimistas de US$ 500 bilhões, sendo mais provável um valor menor até 2020, crescendo progressivamente em direção à metade do século. Neste último caso, as novas fontes de financiamento desempenharão um papel importante, complementando as que atualmente suportam o investimento em fontes renováveis.

 

 

VIII. Qual será o papel futuro das empresas de gás e óleo?

As companhias de petróleo são protagonistas dos sistemas de energia atualmente existentes, com base em combustíveis fósseis. Muitas dessas empresas estão investindo em energias renováveis, mas ainda em níveis relativamente baixos, embora existam indicativos de que algumas delas planejam grandes investimentos no longo prazo.   Ao longo da última década, algumas companhias de petróleo têm procurado posicionar-se como futuros fornecedores de hidrogênio a partir de fontes renováveis, ou em projetos de energia solar ou de biomassa, ainda em pequena escala. Em geral, as empresas de petróleo estão claramente se posicionando como fornecedores de biocombustíveis, ao lado de outros investidores do setor, por ser o segmento mais próximo do seu negócio central.   Alguns especialistas acreditam que a capacidade de logística em projetos marítimos desempenhará um papel importante para as empresas de petróleo, conferindo-lhes vantagens comparativas na exploração de energia eólica offshore.

 

  Minha visão é que as empresas de petróleo e gás têm perfeita consciência do papel das energias renováveis no futuro, e elas estão se movendo nessa direção, mas não na mesma velocidade de outros investidores. No momento em que as companhias de petróleo começarem a investir no mesmo ritmo que os demais investidores, haverá um impulso para a rápida expansão da participação da energia renovável na matriz energética.  

 

IX. A Energia renovável se comportará como os produtos agrícolas orgânicos?

Como engenheiro agrônomo, me sinto confortável para fazer esse tipo de comparação.

  Atente-se que os consumidores já dispõem de uma variedade de opções para a compra de energia "verde" renovável, geralmente na forma de energia elétrica, de bioetanol, biodiesel e biogás.   De outra parte, há uma tendência mundial no sentido de que a governança corporativa concentre-se cada vez mais em metas de sustentabilidade. E a energia verde é apropriada para atender esses objetivos. Esta é uma tendência encorajadora, na medida em que a energia renovável é visualizada como importante na sustentabilidade empresarial.

 

  Minha opinião é que o alimento orgânico é percebido como uma alternativa mais saudável ao alimento convencional, e as energias renováveis também têm o "selo verde", que é convenientemente visualizado pelas empresas como um ícone da sustentabilidade. Logo é plausível que grandes corporações incentivem o uso de energia renovável próprio ou de terceiros, como forma de serem percebidas como sustentáveis.  

 

X. Como será a evolução da tecnologia, dos custos e do mercado global?

A participação de energia renovável na matriz energética dependerá fortemente do custo das energias renováveis para o usuário final. E o custo é intimamente ligado à inovação. Então, analisaremos esses dois fatores em conjunto, para as principais fontes de energia renovável, de acordo com as referências mais recentes.

a.          Energia eólica onshore

Os custos atuais de energia eólica terrestre estão na faixa de US$0,05-0,16 / kWh, embora sejam encontrados custos inferiores a US$0,05 / kWh nos melhores projetos comerciais.

  Há muitas inovações possíveis, como novos materiais, menor peso dos conjuntos, torres de concreto substituindo as metálicas, geradores de ímãs permanentes e os não-magnéticos, menor uso de terras raras, perfis de lâmina deformáveis, monitoramento mais sofisticado e relatórios de desempenho. Neste particular, a otimização do desempenho futuro tem um foco forte na tecnologia da informação e no monitoramento, ou seja, centenas de pontos de medição em uma única turbina, combinados com a manutenção inteligente, levando a menos tempo de inatividade, pois os componentes serão substituídos antes das falhas.  

Melhor aerodinâmica e otimização dos conceitos de dinâmica dos fluidos, balanceamento de rede, avaliação das condições de vento e análise do local do vento que usa anti-correlações de recursos eólicos para menor variabilidade, também serão incorporados. Turbinas de pequena escala, mais baratas, podem revolucionar o uso da energia eólica em aplicações locais e para sistemas híbridos eólico-termogeração, em aplicações off-grid.

 

b.          Energia eólica offshore

Os custos atuais de energia eólica offshore estão na faixa de US$0,11-0,22 / kWh, com tendência a cair para US$0,06 até 2035.  

O "Technology Roadmap" da AIE prevê cadeias de suprimentos melhoradas e estratégias de instalação, que já estarão disponíveis na próxima geração de turbinas eólicas offshore, com fundações flutuantes.

 

A confiabilidade das turbinas marítimas precisa de melhorias, incluindo turbinas mais robustas, projetados desde o início para operar em condições offshore, ajudando a redução dos custos.

 

c.           Energia fotovoltaica

Na Europa, o custo da energia solar fotovoltaica (PV) varia entre US$0,22-0,44 / kWh para instalações em telhados e US$0,20-0,37 / kWh para grandes instalações comerciais. Há projetos comerciais com números mais baixos, na faixa de US$0,09-0,13 / kWh. No longo prazo, os custos para a energia solar PV são projetados para cair abaixo de US$0,10.

As principais inovações que devem chegar ao mercado incluem:

d.          Energia solar concentrada

Os custos de energia solar concentrada (CSP) estão, atualmente, entre US$0,19-0,29 / kWh, devendo refluir para US$0,06-0,10 / kWh no longo prazo.

O "Technology Roadmap" da AIE prevê inovações, incluindo altas temperaturas de trabalho, maior capacidade de armazenamento, plantas supercríticas, dessalinização por cogeração, e torres com receptores de ar e turbinas a gás. O roteiro também prevê redes de linhas de transmissão HVDC para trazer energia CSP de áreas remotas.

 

e.           Energia geotérmica

A energia geotérmica é considerada uma tecnologia madura, com custos de energia atualmente na faixa de US$0,06-0,11 / kWh, com leve tendência de declínio para o futuro.  

A criação de grandes superfícies de troca de calor subterrâneas - conhecidas como sistemas geotérmicos melhorados – e a melhoria da conversão de energia de baixa temperatura, por exemplo, com o Ciclo Rankine Orgânico, poderia tornar possível a produção de eletricidade geotérmica em locais anteriormente inviáveis.

  Plantas avançadas de cogeração de calor e energia também melhorarão a eficiência econômica da eletricidade geotérmica. Como uma parte ponderável dos custos de uma usina de energia geotérmica provém de perfuração subterrânea profunda, é esperado o desenvolvimento de tecnologia de perfuração inovadora, de menor custo.

 

 

f.     Biomassa

Atualmente a energia é obtida a partir de biomassa na faixa de US$0,08-0,17 / kWh (especialmente bioeletricidade em sistema de ciclo combinado potência e calor), igualmente com leve tendência de declínio no médio e longo prazo.

As principais inovações tecnológicas previstas para a área são:

·           Novos processos e carriers energéticos como pellets, bio-óleo de aquecimento, pirólise e torrefação;

·           Melhoria das rotas tecnológicas como a conversão anaeróbica para o biogás; o aumento da produção de biogás de esgoto, dejetos e resíduos orgânicos; novos materiais mais baratos para usinas de biogás; gaseificação térmica; e conversão de sólidos para líquidos;

·           Melhoria de tecnologias de aquecimento como cogeração, sistemas de aquecimento urbano, sistemas de refrigeração de edifícios, e calor ou vapor para processos industriais;

·           Integração de indústrias agrícolas e florestais através de biorefinarias, com desenvolvimento de sistemas de coprodução e multiusos, gerando biocombustíveis, açúcar, energia elétrica e biogás em escala, e que também permitem obter produtos químicos, além de propiciar o uso de resíduos para fabricar rações ou fertilizantes.

 

g.          Biocombustíveis

Os biocombustíveis, em escala global, são mais caros que os equivalentes fósseis. Normalmente isto ocorre por razões de tecnologia, escala e cadeia de suprimentos. Entretanto, no Brasil, o fato decorre de políticas públicas errôneas que, indiretamente, reduziram artificialmente o preço dos combustíveis fósseis

 

Para os biocombustíveis, o conceito mais inovador é a biorefinaria, mas também deve ser considerada viável a produção de biocombustíveis derivados de algas e outras rotas inovadoras, especialmente usando a biologia sintética, com microorganismos modificados, permitindo avançar além da primeira geração (bioetanol, biodiesel e biogás).

  Especialistas apontam para várias possibilidades, incluindo a gaseificação de biomassa, a conversão sólido para líquido, a conversão de cana diretamente a biodiesel, utilizando fermentação de leveduras; bactérias para a produção de biodiesel a partir de materiais celulósicos ou resíduos utilizados como matérias-primas. Para o médio prazo prevê-se o ingresso no mercado, em larga escala, de novos produtos como biogasolina, biobutanol e bioquerosene.

 

Conclusões

Um futuro com grande participação de energia renovável é plenamente atingível e, com certeza, trata-se de uma questão de escolha da sociedade, posto o cenário favorável de inovações tecnológicas e de custo, para os médio e longo prazos.

  No caso da energia renovável, todas as tecnologias necessárias já existem, e as inovações estão no pipeline. No longo prazo, os indicativos são de que os custos serão convergentes, na média das fontes fósseis e renováveis, prevendo-se uma inclinação em favor das energias renováveis, no longo prazo.

 

Há um longo caminho pela frente para melhorar a tecnologia atual, trazendo à luz inovações que certamente afetarão a competitividade e a economia da energia renovável como um todo, em virtude da forte relação existente entre tecnologia e custos.

  A escolha da sociedade se manifestará através das políticas públicas, devendo ser especialmente pressionada por razões ambientais e sociais.   Será necessário refletir sobre o papel da energia como instrumento de equidade social, e conceitos como "democracia de energia" para denotar o controle e a escolha que formas descentralizadas de energia renovável podem trazer.

 

Estas abordagens vão favorecer o investimento menos centralizado, baseados nas comunidades. A aceitação pública de infraestrutura nas proximidades de aglomerados urbanos, como parques eólicos e linhas de transmissão, varia de acordo com o grau com o qual as comunidades locais perceberem que esta infraestrutura está a servi-las diretamente, ou o grau em que elas têm uma propriedade ou o seu controle acionário.   Portanto, na minha opinião, se não tivermos um futuro de energia renovável, não é porque nós não podemos, é porque decidimos não tê-lo.

 

 

Transgênicos na Mesa
Décio Luiz Gazzoni

Tempo houve em que transgênico era sinônimo de capeta ou similar. No momento, pesquisas de opinião nos Estados Unidos e na Europa indicam que a resistência aos OGMs tem caído, refletindo uma gradual mudança de posição da percepção pública. Institutos científicos independentes têm demonstrado que a transgênese, obedecidos os rígidos protocolos de segurança impostos pela legislação, não apresenta riscos à saúde do consumidor superiores aos existentes em alimentos convencionais e tradicionais.  

Órgãos internacionais, como a FAO e a OMS, têm aceitado e repercutido esta posição, o que consolida a nova visão global sobre transgênicos. É esta nova percepção que permitiu que mais de 175 milhões de hectares fossem cultivados com transgênicos, em todo o mundo. No Brasil são quase 40 milhões, com crescimento anual superior a 20%, nos últimos cinco anos.

 

O começo não foi assim. ONGs pilotaram uma batalha feroz contra o arroz dourado, uma variedade que contém até três vezes mais vitamina A que as convencionais. O objetivo era reduzir a cegueira e a mortalidade entre populações pobres, com elevada taxa de morbidade por falta de acesso a alimentos com vitamina A. Como 60% da dieta destas populações é composta de arroz, surgiu a ideia do arroz dourado. A ideia "morreu" antes de serem colhidas as primeiras espigas. Outro produto que "não pegou" foi o tomate com maior tempo de prateleira (Favr Savr Tomato) e a primeira variedade de batata tolerante a um agrotóxico.  

Talvez o grande indicador da mudança seja a aprovação pelos órgãos de controle dos EUA do salmão transgênico, que chegará ao mercado em 2014. Trata-se do primeiro animal geneticamente modificado a entrar na cadeia de consumo comercial, após haver enfrentado anos de estudos, discussão e polêmica.

 

Panorama

A lista dos produtos geneticamente modificados já é grande e tende a crescer aceleradamente nos próximos anos. Em termos globais, o milho tem o maior número de eventos aprovados (121 em 23 países), seguido pelo algodão (48 em 19 países), batata (31 em 10 países), canola (30 em 12 países) e a soja (22 em 24 países).   O futuro será marcado pela diversidade, fruto de ondas sucessivas de produtos GM que, além das características que interessam ao produtor (resistência a herbicidas ou a pragas), atenderão anseios do consumidor, principalmente em aspectos nutricionais. A exposição a seguir detalha a situação dos principais produtos agrícolas cultivados com materiais GM:

  1. Algodão: São dezenas de variedades de algodão GM, cultivadas em diferentes países, que apresentam resistência a herbicidas e/ou insetos (variedades Bt). A área de algodão GM no mundo supera 20 Mha (milhões de hectares), ou 81% do total, sendo 11 Mha na Índia, ou 88% da área, o mesmo índice dos EUA;

  2. Arroz: Um dos principais alimentos do mundo, o arroz desperta interesse dos órgãos de pesquisa públicos e privados. O arroz dourado volta à pauta de discussão, assim como existem estudos avançados de novas variedades GM resistentes a pragas, em especial a insetos;

  3. Abóbora: Já são seis as variedades GM comerciais de abobrinha, derivadas de dois eventos que conferem resistência a três vírus que dizimam a cultura. Elas são cultivadas exclusivamente no EUA e Canadá;

  4. Canola: Variedades tolerantes a herbicidas, ou com maior produtividade e características nutricionais melhoradas estão disponíveis na Europa, EUA, Japão, Austrália, além do Canadá, onde 98% da canola é GM. No mundo todo, são plantados 11 Mha com canola GM, representando 30% da área total de cultivo;

  5. Feijão: A Embrapa obteve, em 2011, a aprovação na CTNBio para o cultivo comercial de uma variedade de feijão resistente ao vírus do mosaico dourado. Esta enfermidade pode ser devastadora e arrasar lavouras de feijão, sendo a praga mais importante da cultura na América Latina;

  6. Mamão papaya: Cientistas americanos desenvolveram uma variedade de mamão resistente a vírus, que devasta as plantações e, atualmente, 85% da área de mamão papaya do Havaí é plantada com mamão GM, sendo consumida nos EUA, Canadá e Japão;

  7. Milho: O milho conta com grande diversidade de variedades GM, sendo 55 Mha cultivados com GM (35% da área). No Brasil são 18 materiais autorizados pela CTNBio, tolerantes a herbicidas e/ou a insetos, cobrindo mais de 85% da área, valor similar ao observado nos EUA;

  8. Soja: Uma vez esmagada, da soja obtém-se óleo e farelo. A maior parte do óleo é destinada diretamente à alimentação humana, e parte dele segue para a indústria de biodiesel. Parcela do farelo proteico segue diretamente para a indústria de alimentos, enquanto a maior proporção é utilizada para formulação de rações, que alimentam frangos, suínos e gado de corte ou leite. Além disso, da soja são extraídos outros alimentos, como o leite de soja, tofu, bebidas de frutas e soja e a pasta misso. Dos quase 105 milhões de hectares cultivados com soja, no mundo, cerca de 82% é ocupado com soja GM. A maior proporção se encontra na Argentina (99%), seguida por EUA e Brasil (90%).

Outros aspectos

Micro-organismos como bactérias, fungos ou fermentos foram modificados com genes de estômagos de animais para produzir quimosina, e passaram a ser cultivados em laboratório. A quimosina resultante deste processo - e que depois é inserida no soro do leite, para produzir queijo – é tida como idêntica à que era extraída da forma tradicional. Essa enzima é pioneira entre os produtos gerados por OGMs e está no mercado desde os anos 90.   Trigo e centeio, que são os principais cereais usados para fazer pão, continuam sendo plantados de forma convencional. Entretanto, outros ingredientes usados em pão e bolos vêm da soja (farinha, óleo e lecitina), do milho (glucose e amido) ou de micro-organismos modificados (ácido ascórbico, enzimas e glutamato). Dependendo da proporção destes elementos transgênicos no produto final (acima de 1%), ele terá que ser rotulado.

 

Nas cadeias de energia, a transgênese é uma ferramenta fundamental para obter microganismos tanto para aproveitamento de material lignocelulósico (resíduos), quanto para diversificar o portfólio de biocombustíveis. A obtenção de etanol celulósico e de farneseno a partir de cana-de-açúcar são exemplos concretos de tecnologias pré-comerciais.

  Há 20 anos, quando a engenharia genética engatinhava, escrevi um artigo prevendo que, na década de 2020, todo o produto agrícola importante, cultivado no mundo, teria variedades transgênicas. E que, ao final daquela década, a maior parte da área cultivada no mundo seria coberta com materiais GM. Produtos derivados de variedades geneticamente modificadas já ocupam parcela significativa da dieta alimentar, em escala global. Isso se tornou possível pela mudança da percepção social do risco dos transgênicos – uma derivada direta dos protocolos de segurança, do avanço da Ciência e das políticas públicas de proteção à saúde do consumidor.

 

 

Mais alimentos, porém mais sustentáveis
Décio Luiz Gazzoni

As Nações Unidas projetam um pico de 9,5 bilhões de pessoas, na segunda metade deste século. Isto significa mais três bilhões de bocas para alimentar, além de um bilhão de pessoas atualmente com carência alimentar. Tal projeção nos confronta com questões sociais, econômicas, ambientais e políticas que precisam ser abordadas hoje para garantir um futuro sustentável para todos. Uma questão-chave é como produzir mais alimentos em um mundo de recursos finitos.   Até aí é o senso comum. Quero acicionar outro ângulo à análise. Hoje, produzimos cerca de quatro bilhões de toneladas de alimentos por ano. No entanto, devido a práticas inadequadas na, colheita, transporte e armazenamento, bem como ao desperdício no mercado e pelo consumidor, estima-se que até 50% (2 bilhões de toneladas) de todos os alimentos produzidos nunca chega a um estômago humano! Ou seja, grandes quantidades de terra, energia, fertilizantes e água também foram perdidos na produção de alimentos que viram lixo. Esta é a conclusão de um estudo divulgado em março de 2013, pelo Institution of Mechanical Engineers (IMECHE).   Neste contexto, para atender mais 4 bilhões de pessoas, precisaríamos produzir 60% mais. Porém, se zerássemos o desperdício, a necessidade seria de apenas mais 10%. Se reduzíssemos o desperdício à metade, seria necessário aumentar a produção atual em apenas 30% em 50 anos, ou seja, apenas os ganhos de produtividade, sem terra adicional, dariam conta do recado.

 

Demografia

O IMECHE identificou três grandes grupos populacionais no mundo:

  1. Totalmente desenvolvidos (ex.: Europa), com populações estáveis ou em declínio, e aumento da média da faixa etária;

  2. Nações em desenvolvimento, industrializando rapidamente (ex.: China), que sofrerá brevemente diminuição populacional e aumento do perfil de idade;

  3. Países que estão começando a industrializar (ex.: África), que duplicarão ou triplicarão suas populações até 2050, e com um perfil de idade jovem.

Cada grupo terá de lidar, nas próximas décadas, com diferentes questões da produção, transporte e armazenamento de alimentos, bem como com as expectativas dos consumidores.   Em países menos desenvolvidos, como os da África Subsaariana e no Sul da Ásia, o desperdício ocorre principalmente na lavoura e armazenagem, com colheita ineficiente, transporte local inadequado e infraestrutura deficiente de armazenagem.   Em países plenamente desenvolvidos, com práticas agrícolas e transportes mais eficientes, instalações de armazenamento e de processamento adequadas, uma proporção maior dos alimentos produzidos atinge os consumidores. No entanto, o alimento é desperdiçado na etapa de varejo e pelo comportamento do cliente.

 

Grandes supermercados, para atender as expectativas do consumidor, muitas vezes rejeitam, ainda na fazenda, colheitas inteiras de frutas e legumes perfeitamente comestíveis, porque eles não cumprem as exigências cosméticas de tamanho e aparência. Por exemplo, até 30% da safra de olerícolas do Reino Unido nunca é colhida, em decorrência de tais práticas.  

Nos supermercados são rotineiras promoções que incentivam os clientes a comprar quantidades excessivas, tipo "pague 2 leve 3". No caso de produtos alimentares perecíveis, entre 30% e 50% do que foi comprado nos países desenvolvidos é jogado fora pelo comprador.

 

Terra, água e energia

Nas últimas cinco décadas, as tecnologias, juntamente com uma expansão de 12% do uso da terra cultivada, aumentaram significativamente a produção das culturas. No entanto, já são utilizados 4,9 bilhões de ha dos potenciais 10 bilhões de ha aráveis disponíveis. O aumento exagerado na área de agricultura, sem afetar desfavoravelmente o que resta dos ecossistemas naturais do mundo, parece improvável.   E há a relação entre agricultura e pecuária: um hectare de terra pode produzir arroz ou batatas para 20 pessoas por ano, porém produz carne para apenas uma ou duas pessoas.

 

Ao longo do século passado, a captação de água doce para uso humano aumentou em mais do dobro da taxa de crescimento da população. Atualmente, cerca de 3,8 trilhões de m3 de água são usados por seres humanos, por ano, 70% pela agricultura. A utilização desse recurso na agricultura vai continuar a aumentar nas próximas décadas - o Brasil será uma exceção neste particular. No futuro, a demanda de água na produção de alimentos pode atingir 2,5 a 3,5 vezes mais do que o total de água doce utilizada hoje.  

A irrigação melhora drasticamente a produtividade das culturas e cerca de 40% da oferta mundial de alimentos provém de terra irrigada. No entanto, a água usada na irrigação é muitas vezes obtida de forma não sustentável, por meio de poços em aquíferos mal gerenciados. Embora os métodos de irrigação por gotejamento sejam mais caros de instalar, são 33% mais eficiente na utilização de água e fertilizantes.

  No processamento de alimentos, há grande uso de água, sendo particularmente importante na produção de carne, que utiliza 50 vezes mais água do que os vegetais. No futuro, as técnicas mais eficientes de lavagem, procedimentos de gestão e de reciclagem e purificação de água serão vitais para reduzir o desperdício.

 

A energia é um recurso fundamental durante todo o ciclo de produção de alimentos, com estimativas que mostram uma média de 7-10 calorias para a produção de uma caloria de alimento, variando de três calorias para as culturas mais eficientes, a 35 calorias na produção de carne de boi. Uma vez que grande parte desta energia vem de combustíveis fósseis, o desperdício de alimentos contribui para o aquecimento global.   Na agricultura altamente tecnificada, de alta produtividade, o consumo de energia na fabricação e aplicação de fertilizantes e agrotóxicos é muito alto. Nas nações desenvolvidas, 50% da energia para produção de trigo é atribuída a este fator. Em escala global, a fabricação de fertilizantes consome cerca de 3-5% do gás natural. Estes números impõem a necessidade de, além de reduzir o desperdício, associar a produção agrícola com o uso de energia renovável.

O que fazer?

O aumento da população, combinado com padrões nutricionais melhorados e preferências alimentares restritivas, irá exercer pressão para aumento da oferta mundial de alimentos. Pode-se até aumentar muito a produtividade, no entanto ainda haverá pressão em recursos finitos como energia, solo e água, a menos que se mude o padrão de seu uso.   É perfeitamente possível alimentar a população prevista para o futuro, porém o caminho mais racional passa pela eliminação ou redução radical das perdas, ao mesmo tempo em que se diminui o uso de energia, terra e água para cada quilo de alimento produzido.

 

Emissões no cultivo da cana
Décio Luiz Gazzoni

É consenso o fato de que o impulso dos últimos dez anos à produção e uso de energia renovável – biocombustíveis inclusos – deve-se, em grande parte, às questões ambientais. E o principal ícone da temática ambiental ligada à energia, são as emissões de gases de efeito estufa (GEE), causadores das mudanças climáticas globais. Menores emissões podem significar a diferença entre ocupar maior ou menor espaço de mercado, razão pela qual é muito importante estabelecer, além de qualquer dúvida razoável, as emissões reais de qualquer fonte de energia.   Decantada como uma opção que reduz emissões de GEE, a cana-de-açúcar vive o dilema da mulher de César: não basta ser sustentável, é necessário demonstrá-lo recorrentemente. Não basta produzir bioetanol, um biocombustível amigável ao ambiente, é necessário demonstrar sua sustentabilidade. Um dos critérios de sustentabilidade de uma cultura exige a demonstração de que as emissões de gases de efeito estufa sejam baixas, comparativamente a outros cultivos ou outras fontes de emissão.

 

Teoria e prática

No vácuo de estudos de campo, modelos matemáticos têm sido usados para estimar as emissões de GEE da cana. Um modelo que vinha sendo amplamente aceito em setores governamentais e acadêmicos foi desenvolvido pelo Dr. Paul Crutzen (Premio Nobel de Química) e colaboradores. No modelo foram utilizados valores extraídos de um estudo publicado em 2008, cujo título é muito taxativo (Liberação de óxido nitroso na produção de agrobiocombustíveis nega mitigação do aquecimento global pela substituição de combustíveis fósseis).   O modelo estabeleceu que se o fator de emissão de N2O da cultura de cana-de-açúcar ultrapassasse 5% da quantidade de nitrogênio dos fertilizantes, os ganhos ambientais do uso do etanol como biocombustíveis seriam frágeis demais para que o produto fosse considerado uma fonte de energia limpa. O prejuízo ambiental causado pela emissão de N2O não seria compensado pelo sequestro de carbono ocasionado pela fotossíntese e pela alta eficiência energética da cana-de-açúcar. A íntegra do estudo pode ser obtida em Crutzen, P. J.; Mosier, A. R.; Smith, K. A.; Winiwarter, W. - "N2O release from agro-biofuel production negates global warming reduction by replacing fossil fuels". Atmos. Chem. Phys. 8: 389–395 (2008).  

Obviamente que um estudo assinado por um detentor de um Premio Nobel de Química, negando a mitigação das mudanças climáticas globais, devido a elevadas emissões de GEE no ciclo produtivo de matéria prima de biocombustíveis, tem o poder de impactar negativamente investimentos públicos e privados no setor.

 

 

Emissões reais

Cientistas brasileiros resolveram aprofundar o estudo do tema, em condições de campo. Um trabalho pioneiro, liderado pela UFSCar, e que envolveu outras Universidades, a Embrapa, o IAC e o CTC, investigou a relação entre as emissões de GEE, a adubação e o acúmulo de palhada no canavial. O estudo completo pode ser acessado em http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1757-1707.2012.01199.x/pdf.   Contrariamente ao que consta no artigo do Dr. Crutzen e colaboradores, a principal conclusão do estudo é que as emissões efetivas são menores que aquelas estimadas pelos modelos. A pesquisa liderada pela Dra. Janaína do Carmo, da UFSCar, encontrou emissões de 6,9 kg/ha/ano de CO2 e 7,5 kg/ha/ano de N2O. Como o potencial de aquecimento global do NO2 é 310 vezes superior ao CO2, as emissões de NO2 medidas em CO2 equivalente (o padrão universal de medida de emissões de GEE) ascendem a 2.330 kg/ha/ano. Se computadas as emissões de metano, este valor poderia chegar a 3.000 kg/ha/ano.

 

Fator de emissão

A pesquisa revelou que o fator de emissão nos canaviais adubados apenas com fertilizantes nitrogenados chegou a 0,68%. Em outras palavras, de cada 100 quilos de nitrogênio utilizados como adubo, 680 gramas foram transformados em óxido nitroso e emitidos para a atmosfera. Este valor situa-se muito abaixo dos 5% estimados no trabalho de Crutzen e colaboradores.

  O fator de emissão de uma fonte é fundamental para o estabelecimento de políticas públicas, como a definição de "biocombustível avançado", que exige baixas emissões para seu enquadramento nesta categoria, o que lhe confere melhores condições de acesso ao mercado. Portanto, o estabelecimento dos valores reais de GEE nos ciclos de produção de biocombustíveis é fundamental para o planejamento energético dos países, que se desdobra na definição dos investimentos no sistema industrial e na produção da matéria prima.

 

Conclusões

Nas medições, realizadas em canaviais de Jaú e Piracicaba, os cientistas encontraram fatores de emissão tão baixos quanto 0,68%. Na média final do estudo, o fator calculado foi inferior a 1%, contrastando fortemente com os valores de 3-5%, usados pelo Dr. Crutzen e colaboradores em seu modelo matemático.  

Como as emissões de óxido nitroso estão fortemente associadas com a adubação e com a presença de resíduos da cultura no campo, estes aspectos foram estudados pelos cientistas. Por tratar-se de um estudo experimental, os pesquisadores procuraram avaliar a interação entre diferentes situações, mesmo extrapolando as doses de fertilizantes. Foi, então, observado que as emissões aumentavam quando a cana foi fertilizada com vinhaça e torta de filtro (resíduos da produção de etanol, ricos em fertilizantes, especialmente em nitrogênio), e quando havia grande quantidade de palha de cana no solo, que também é rica em nitrogênio, e cuja decomposição libera óxido nitroso. Assim mesmo, os fatores de emissão situavam-se abaixo do calculado pelo Dr. Crutzen e seus colaboradores, reforçando as conclusões anteriores.

 

Com o aprendizado obtido neste estudo, os autores já planejam investigar o balanço das emissões e captações de gases do efeito estufa na produção de etanol, para estabelecer, em definitivo, as emissões reais durante todo o ciclo da cultura, em condições de campo.

 

 

 

Cianobactérias e biorefinarias
Décio Luiz Gazzoni

Já é conhecida e divulgada a potencialidade de algas para a produção de biocombustíveis e também para a obtenção de especiarias químicas. Este artigo pretende descortinar as possibilidades de outros organismos que, assim como as microalgas, podem constituir sinergias interessantes com as atuais plantas de produção de etanol. Cianobactérias, também conhecidas popularmente como algas azuis, são os mais antigos e primitivos organismos semelhantes a plantas, com capacidade de adaptação a uma grande variabilidade de condições ambientais. As cianobactérias prosperam em regiões áridas e semiáridas, em oceanos ou lagos, bem como sobre as rochas de ecossistemas aquáticos e terrestres. Geralmente são encontradas em ambientes que, em algum momento, se tornam anóxicos, como em sedimentos de lagos ou em simbiose na rizosfera de plantas superiores.

  Esta vasta amplitude ecológica das cianobactérias só é possível devido a várias adaptações fisiológicas. Por exemplo, a capacidade de emular processos tipicamente vegetais como a fotossíntese e a capacidade de fixar o nitrogênio da atmosfera, permite a colonização da maioria dos habitats naturais e também faz das cianobactérias simbiontes valiosos em plantas superiores.   Uma das características que bem demonstra a amplitude de adaptação das cianobactérias é a capacidade de se reproduzir e crescer no escuro, durante um tempo relativamente longo. Por exemplo, sabe-se que a cianobactéria filamentosa do gênero Planktothrix, que ocorre com frequência em lagos nos Alpes, pode crescer no escuro, à mesma taxa que à luz, quando cultivada em um ciclo de claro e escuro, utilizando um processo conhecido como respiração de glicogênio. Outras cianobactérias são capazes de obter energia a partir de vários substratos, como a glicose, frutose ou sacarose em condições escuras e anoxigênicas.

 

 

Especiarias químicas

Do ponto de vista industrial, o que interessa é o aproveitamento econômico que pode ser obtido da rusticidade, diversidade e capacidade de produção de substâncias químicas das cianobactérias, que são extremamente ricas na produção de metabólitos secundários com propriedades interessantes. Um dos primeiros produtos comerciais obtidos de cianobactérias é um bloqueador de radiação ultra violeta da luz solar, denominado citonemina, que absorve a radiação no comprimento de onda de 325-425 nm. O produto é encontrado naturalmente em colônias de cianobactérias, sendo responsável pela cor preta do chamado "Tintenstriche", que se observa nas rochas dos Alpes.

  Na área farmacêutica existem diversas substâncias produzidas por cianobactérias. Uma que se encontra em estudo é a Cyanovirin-N, que é um agente antiviral, com comprovada eficácia contra HIV. A partir das cianobactérias também são produzidas as microcistinas, que são agentes antitumorais, com potencial de se transformarem em medicamentos anticancerígenos.

 

Também podem ser obtidas as microgininas, que são lipopeptídeos, não tóxicos, com quatro a seis aminoácidos. Este grupo é caracterizado pela presença do derivado de aminoácido 3-amino-2 hidroxi-decanóico (AHDA) no N-terminal em comum, com efeito inibidor sobre a enzima conversora de angiotensina (ACE). Elas são, portanto, potenciais agentes para o tratamento de hipertensão e de doenças associadas, tais como a insuficiência cardíaca crônica e nefropatia diabética. Os compostos inibem ainda outras metaloproteases de zinco, como por exemplo, as leucina-aminopeptidases.   As cianobactérias também produzem vários polissacarídeos extracelulares, que são usados para o sequestro de nutrientes, proteção contra herbívoros e resistência à dessecação. Elas contêm várias proteínas ligadas a açúcares, que permitem a obtenção de substâncias com propriedades químicas demandadas por diferentes segmentos do mercado de química fina.

 

 

Energia

O etanol é, atualmente, uma das fontes de energia alternativa mais promissoras para substituir a gasolina, e tem sido produzido através de fermentação, principalmente a partir do milho, cana-de-açúcar e outras plantas agrícolas. A crescente demanda por energia e as preocupações ambientais sobre as emissões de dióxido de carbono tornam o desenvolvimento e a produção de biocombustíveis renováveis cada vez mais atraentes.   Exceção feita ao Brasil, onde o etanol em larga escala é obtido de cana, em outros países ou regiões, como EUA ou Europa,a atual produção de bioetanol enfrenta barreiras, devido a problemas como a concorrência com a produção de alimentos (a partir de biomassa baseada em cultivos alimentares) ou custo-efetividade (a partir de biomassa lignocelulósica).   Diversos grupos de pesquisa buscam alternativas para a produção de biocombustíveis na escala de centenas de bilhões de litros, em âmbito global.

 

Os fotossintatos produzidos por cianobactérias e outros microrganismos fotossintéticos podem ser transformados em etanol, sendo o rendimento mais elevado que aquele obtido com as técnicas tradicionais de fermentação de extratos de plantas (cana, milho, trigo, cevada ou beterraba) porque, dadas as condições ideais, o crescimento das colônias de bactérias é intenso e rápido, permitindo grande produção em menor espaço de tempo.  

As cianobactérias têm sido isoladas de vários habitats, tanto de água doce quanto de sistemas marinhos. Posto que elas apresentam uma variação ampla nas propriedades fisiológicas, uma coleção de cianobactérias de vários habitats fornece uma excelente plataforma para a seleção de estirpes adequadas a diferentes processos industriais, em função do perfil de demanda do mercado.

 

Uma das soluções que está sendo perseguida é integrar a produção de biomassa e a conversão microbiana para produção de etanol, utilizando a bactéria fotossintética Synechocysti ssp. Ela pode converter diretamente dióxido de carbono em etanol, por meio de um sofisticado e exclusivo sistema biológico.   A estirpe mutante PCC6803 apresenta elevada eficiência de produção de etanol, que pode atingir até 5,50 g L-1 de meio de cultura, com rendimento de 500mg L-1 dia-1. A estirpe foi construída geneticamente por introdução da enzima piruvato descarboxilase de Zymomonasmobilis e superexpressão da enzima álcool desidrogenase endógena, através de recombinação homóloga em dois diferentes locais do cromossomo, além de silenciar a via biossintética de poli-β-hidroxibutirato.  

No total, ocorre a combinação de nove enzimas álcool desidrogenases, obtidas a partir de diferentes estirpes de cianobactérias, que foram clonadas e expressadas em Escherichia coli, para testar a eficiência da produção de etanol. Foram avaliados os efeitos de diferentes condições de cultivo, incluindo a água de torneira, íons metálicos e aeração anóxica na produção de etanol, como critério de seleção das melhores combinações.

 

Tecnologia

A tecnologia para testes em protótipos foi estabelecida a partir de uma sequência rotineira em processos microbiológicos industriais, com o cultivo de cepas obtidas em uma coleção de mais de 1.500 estirpes, pertencentes a mais de 50 gêneros, testadas em pequena escala, em fotobiorreatores para até mil litros, em ambiente ao ar livre. Após o cultivo em meio adequado, ocorre a colheita e a liofilização de biomassa.   A etapa subsequente trata da extração, fracionamento e purificação do composto, preparação dos extratos de acordo com protocolos customizados para o tipo de substância que se tenciona obter.

 

Potencial

A tendência futura das atuais usinas de processamento de cana é a de migrarem, progressivamente, para complexos de biorefinarias, integrando a produção de alimentos, energia, especiarias químicas, fertilizantes, etc. Com o ganho de amplitude, torna-se necessário tornar mais abrangente tanto a matéria prima com a qual se opera, quanto os processos tecnológicos, bem como o espectro de produtos de alto valor agregado.   Este é um ambiente no qual as bactérias cianogênicas encontram um nicho no qual podem se adaptar com perfeição aos processos industriais e às demandas de mercado. Uma sinergia específica com microalgas e cianobactérias é o aproveitamento da vinhaça como meio de cultura, enriquecendo-a com o gás carbônico proveniente da fermentação, considerado um insumo "fertilizante" para esta classe de organismos.   Para maiores informações sobre o tema, recomendo dois contatos:Dr. Rainer Kurmayer ou Dr. Guntram Christiansen telefone 0043 6232312532 E-mail: rainer.kurmayer@oeaw.ac.at; guntram.christiansen@gmail.com.

 

 

Sustentabilidade

Décio Luiz Gazzoni

  Em abril passado comentei, neste espaço, um projeto futurístico do Conselho Internacional de Ciências, denominado Future Earth, voltado para a indução de inovações científicas e tecnológicas com foco no desenvolvimento sustentável. O projeto começou a ganhar forma em uma reunião que realizamos no México e aumentou sua musculatura em outra reunião realizada no Rio de Janeiro. Hoje estou em Nairobi, Quênia, participando de uma reunião de caráter operacional, com o objetivo de elaborar uma agenda de ciência e tecnologia para a África, com fulcro na sustentabilidade das atividades econômicas. Particularmente, estarei diretamente envolvido com o segmento da geração de energia sustentável, tanto para abastecer o continente quanto para exportação.  

 

A experiência setorial brasileira e latino-americana será importante para orientar um planejamento estratégico de médio e longo prazo, especialmente no tocante à agroenergia (bioetanol, biodiesel, biogás e bioeletricidade), além dos avanços ponderáveis que estamos obtendo em geração de energia eólica e solar, em nosso continente. Em especial na porção da África que se situa ao sul do deserto de Saara, existe um potencial de produção agropecuária que está longe de ser devidamente utilizado. A partir da bem sucedida experiência brasileira, e posta a similaridade de condições entre o Brasil e a parte sul da África, é possível elaborar um planejamento estratégico, de longo prazo, que, entre outros aspectos, contemple a produção de alimentos e fibras, conjuntamente com a produção de matéria prima para a indústria de biocombustíveis. Entretanto, ainda existem algumas demandas elementares a serem atendidas na África, como a melhoria dos fogões à lenha, ainda amplamente utilizados, e que são responsáveis por muitos acidentes e doenças respiratórias.   Os institutos e agências científicas e tecnológicas do continente africano poderão se beneficiar em larga escala dos avanços e dos sucessos obtidos em outros países, em condições similares. Dada a pobreza endêmica do continente, e as dificuldades de executar um projeto amplo na área de Ciência e Tecnologia, o aporte de experiências bem sucedidas alhures será de grande valia para a sociedade africana.

 

 

Choque de realidade

Décio Luiz Gazzoni

Entre abril e maio participei de cinco reuniões internacionais, em quatro continentes, tratando de agropecuária e energia. Eu deveria ficar feliz com as unânimes manifestações de admiração pelo agronegócio brasileiro, por vezes beirando a inveja, as quais poderiam ser sintetizadas em algo como: o Brasil é um paraíso para o agronegócio! Ou: como gostaríamos de ter um programa de biocombustíveis como vocês têm no Brasil!   Constrangidamente, nas preleções que efetuei, fui obrigado a reposicionar os fatos em seu contexto realista, em contraponto à imagem vendida ou à percepção havida por quem desconhece o agronegócio brasileiro, em toda a sua extensão. Dentro da porteira, e no que depende do produtor rural, o nosso agronegócio vai muito bem, obrigado. Entretanto, a produção poderia ser, quiçá, o dobro do que é. A exportação idem. Onde está o problema? Fora da porteira. É só transferir a soja, o milho ou as caixas de frutas para o caminhão, e aí começa o inferno do agronegócio. Do conjunto do Custo Brasil (impostos altos, crédito curto, câmbio irrealista, burocracia excessiva, etc.) a logística - armazenamento e transporte - é o grande óbice que, atualmente, impede nosso agronegócio de realizar seu potencial. Fretes caríssimos, estradas esburacadas, ferrovias insuficientes, aquavias inexistentes limitam o agronegócio, as divisas, os empregos e os alimentos que poderiam ser produzidos.

 

 

No caso do bioetanol, além desses dramas, uma política pública explicita de limitar o preço da gasolina, fazendo com que a Petrobras e o Tesouro Nacional arquem com os custos de importar petróleo, para manter o preço da gasolina artificialmente baixo, impediu a produção de 63 bilhões de litros de bioetanol, nos últimos 4 anos que valeriam, na porta da usina, R$ 71 bilhões. E, de quebra, está arrasando com as finanças da Petrobras, outrora a maior empresa do Brasil e uma das maiores do mundo.   A ausência de investimentos em armazenamento e transporte, e a política equivocada de compressão artificial de preços de combustíveis não prejudicam apenas os atores do agronegócio, representam um pezão no freio do desenvolvimento brasileiro. Deu para entender duas das razões do pibinho dos últimos anos?

 

 

Plano ABC

Décio Luiz Gazzoni

O agronegócio brasileiro tem um compromisso inarredável com a sustentabilidade. O Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (Plano ABC), elaborado de acordo com o Decreto 7.390/2010, tem por propósito a organização e o planejamento das ações a serem realizadas para a adoção das tecnologias de produção agrícola sustentáveis, selecionadas com o objetivo de responder aos compromissos de redução de emissão de gases de efeito estufa (GEE) no setor agropecuário, assumidos pelo país em foros internacionais.   Trata-se de uma política pública altamente meritória, administrada pelo MAPA, com fulcro no compromisso do Brasil com a redução de emissões de GEE, no bojo do esforço de mitigação das mudanças climáticas globais. Traduz também o compromisso do Governo e da iniciativa privada com a sustentabilidade dos processos e do conjunto do Agronegócio brasileiro.

Seu objetivo principal é garantir o aperfeiçoamento contínuo dos sistemas e práticas de uso e manejo sustentável dos recursos naturais, que promovam a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE), e, adicionalmente, também aumentem a fixação atmosférica de CO2 na vegetação e no solo.   O Plano ABC é composto por sete programas, seis deles referentes às tecnologias de mitigação, e um programa com ações de adaptação às mudanças climáticas, quais sejam: Recuperação de Pastagens Degradadas; 2) Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) e Sistemas Agroflorestais (SAFs); 3) Sistema de Plantio Direto (SPD); 4) Fixação Biológica de Nitrogênio (FBN); 5): Florestas Plantadas; 6) Tratamento de Dejetos Animais; e 7) Adaptação às Mudanças Climáticas.   A abrangência do Plano ABC é nacional e seu período de vigência é de 2010 a 2020, sendo previstas revisões e atualizações em períodos regulares não superiores a dois anos, para readequá-lo às demandas da sociedade, às novas tecnologias e incorporar novas ações e metas, caso se faça necessário. Entre 2011 e 2020, para alcançar os objetivos do Plano ABC, serão aplicados R$ 197 bilhões, financiados com fontes orçamentárias ou linhas de crédito, repassados aos agricultores brasileiros.

 

O futuro da soja

Decio Luiz Gazzoni

 

Nas próximas quatro décadas, os fatores que afetarão a demanda global por soja serão os demográficos (população, expectativa de vida e estrutura etária), os econômicos (crescimento do PIB, renda per capita e inflação), os sociais (inclusão social e mudança de hábitos), os tecnológicos (inovações de produtos concorrentes ou novos usos da soja, produtividade, redução de custos de produção), os ambientais (biocombustíveis, bioprodutos, demanda de insumos) e os nutricionais (demanda por proteína e óleo).

Esse conjunto de fatores tem importância capital até a década de 2050, e alguns deles até decrescem de importância a partir daquela data, com fundamento nos seguintes aspectos:

 

 

  1. Os principais institutos que prospectam o comportamento da curva populacional do planeta indicam que, até 2050, haverá crescimento positivo da população, embora com incrementos decrescentes a cada ano. Na década de 2050 a população tende a estabilizar-se, para diminuir progressivamente rumo ao fim do século;

  2. A expectativa para os próximos anos é a sequência de ciclos típicos do capitalismo, com períodos longos de crescimento econômico sustentável, com expansão do PIB global a altas taxas, entremeados por interstícios de baixo crescimento. Uma crise profunda, como a que vivenciamos no momento, será um evento raro até 2050. O ambiente econômico de relativa estabilidade é propício à ampliação do consumo;

  3. A legião de pessoas com insegurança alimentar é estimada pela FAO em um bilhão de pessoas, na atualidade. A expectativa de redução do crescimento populacional, com os ganhos de produtividade agrícola e o incremento da renda per capita, permite estabelecer uma premissa de que, em 2050, o contingente de famélicos será meramente friccional, aumentando a demanda por proteína e óleo no decorrer do período;

  4. Após 2050 a economia da maioria dos países estará amadurecida, e a população estável ou decrescente, com pouco espaço para crescimento adicional de consumo de produtos agrícolas.

  Aceitas as premissas, a tese que queremos demonstrar é que atingiremos o pico da demanda agregada de produtos agrícolas na década de 2050. Portanto, o farol da inteligência estratégica precisa iluminar o caminho até aquela década, pois, a partir dela, muda a importância relativa entre os fatores de competitividade, afetando a relação de equilíbrio entre os players do mercado.  

 

Corolários

 

Os países que estabelecerem uma agropecuária sólida, sustentável, bem fundamentada, e que se tornarem atores chaves no comércio internacional de produtos agrícolas até 2050, estarão em melhores condições de competir a partir daquela data por um mercado que se estreitará em quantidade, mas que se tornará cada vez mais exigente em qualidade.

Entretanto, cabem três considerações importantes:

 
  1. Cada país buscará capturar a maior parcela possível de seu mercado interno para sua própria produção. Em parte por razões econômicas, e em parte por razões sociais, mas principalmente por questões ligadas à soberania e segurança alimentar, mesmo que não disponham de competitividade para tanto;

  2. Quando o esforço para a África tornar-se um grande produtor agrícola estiver amadurecendo – o que demandará, no mínimo, 30 anos – a demanda mundial tenderá a estabilizar-se, fechando o espaço para novos atores de grande escala. Nesta condição, a produção agrícola da África estará mais voltada para seu mercado doméstico que para atender as demandas globais;

  3. Não menosprezemos os break-throughs tecnológicos. A Ciência tem sido pródiga em derrubar paradigmas produtivos, revolucionando o mercado com novas tecnologias, o que realinha, de uma forma não imaginada até então, a paridade competitiva.

Demanda aberta

Neste cenário a soja será, provavelmente, o produto agrícola com maior incremento de demanda até meados do século. Enquanto quase todos os países do mundo produzem alguma quantidade dos cereais que consomem, poucos produzem soja, sendo raros os autossuficientes. Este é um dos principais motivos pelos quais a soja, desde 2003, é o grão mais comercializado no mundo. E quem suprirá o aumento da demanda?   Entre os países grandes produtores de soja, os EUA, atual primeiro produtor, não possui área de expansão, devendo limitar o crescimento da produção ao aumento da produtividade que, dificilmente, será superior a 1,5% ao ano. A Argentina deve atingir, nesta década, o limite da Pampa Úmida, que lhe confere enorme competitividade (terra fértil e com boa logística). Paraguai e Uruguai possuem pouca área para expansão, o mesmo ocorrendo com a Bolívia. Pouco ou nada se pode esperar do restante da América Latina, assim como não haverá produção de soja na Europa. A Ásia não aumenta sua produção há muitos anos, e pouco contribuirá nos anos vindouros. E a África é uma excelente promessa... após 2040.

 

O Brasil fecha a conta

O Brasil será o país responsável por "fechar a conta" para permitir o casamento da oferta e da demanda de soja nos próximos anos. A demanda não será linear no período, sofrendo pressões conjunturais, especialmente de eventos macroeconômicos. O Brasil deverá apresentar o maior incremento em volume físico de produção e, na maioria dos períodos, o maior incremento percentual.   Sabendo desta condição ex-ante, é fundamental estabelecer planos estratégicos para que o crescimento da produção ocorra com lastro no aumento da produtividade sustentável, reduzindo ao indispensável a expansão de área. Assim mesmo, o incentivo deve ser dado para revitalização de áreas degradadas, ou investindo em sistemas de Integração Lavoura, Pecuária e Floresta, otimizando a ocupação territorial. Esta forma de atuação nos conferirá uma vantagem competitiva quase insuperável.  

Em conclusão, o incremento da demanda de soja para os próximos 50 anos será o maior entre os principais grãos cultivados no mundo, e sua produção deverá crescer acima de 150%, até 2050. No cenário descrito, o Brasil deverá tornar-se o maior produtor mundial de soja, provavelmente nesta década, ocupando parcela crescente do mercado internacional. Para tanto, o nosso diferencial competitivo lastrear-se-á no desenvolvimento tecnológico que permita o aumento da produtividade de forma sustentável, minimizando a expansão de área.

 

 

 

Bioprodutos

Decio Luiz Gazzoni

 

No médio prazo, alguns setores do agronegócio apresentarão taxas de crescimento da demanda superiores à produção de alimentos, como agroenergia, flores e plantas ornamentais, e biomassa para a indústria de química fina, destinada à elaboração de bioprodutos. A química verde, usando biomassa como insumo, deverá substituir gradualmente a petroquímica.  

Analisemos um exemplo de espaço mercadológico para um bioproduto. Vivenciamos uma explosão no uso de plásticos, que são polímeros sintéticos, derivados do petróleo. A maior aplicação para os plásticos é no setor de embalagens e seu maior uso é na embalagem de alimentos, devido à flexibilidade, leveza, baixo custo, e às suas adequadas propriedades térmicas e mecânicas, permitindo processos industriais integrados.

  Inicialmente, as embalagens plásticas constituíam-se de camada única de materiais flexíveis ou semirrígidos. As demandas mercadológicas induziram inovações tecnológicas que permitiram produzir os atuais complexos polímeros em multicamada. No entanto, os polímeros têm limitações, como a sua permeabilidade para substâncias de baixo peso molecular, originando oxidação de alimentos, além da contaminação por componentes tóxicos do plástico, afetando sua qualidade e segurança.

 

 

Apesar de a embalagem plástica permitir a preservação dos alimentos, contribuindo para minimizar os resíduos orgânicos, o aumento exponencial de seu uso gera preocupações ambientais, como a gestão de resíduos. Programas de pesquisa estão em curso, objetivando desenvolver plásticos biodegradáveis, de base biológica. Biodegradáveis são materiais que se desintegram por ação de microrganismos, em um ambiente úmido, produzindo dióxido de carbono, água e resíduos sólidos, que são substâncias orgânicas encontradas na Natureza. Esse ambiente propício é encontrado no solo, permitindo a reciclagem de um material sem introduzir substâncias estranhas à composição da biosfera.   Embora seja possível produzir plásticos biodegradáveis de petróleo, o sentimento dominante é que a indústria deve buscar os insumos na biomassa, especialmente resíduos e efluentes da indústria de alimentos, sendo três grupos os mais importantes. O primeiro é representado pelos polímeros diretamente extraídos de biomassa (polissacarídeos como quitosana, amido e celulose); proteínas (farelo de soja, glúten e zeína); e lipídios (triglicérides ou ácidos graxos). Um segundo grupo constitui-se de monômeros derivados de biomassa, incluindo termoplásticos de óleos vegetais, como o ácido poliláctico (PLA), e o biopolietileno produzido com bioetanol. O terceiro grupo compõe-se de polímeros naturais ou produzidos por microrganismos modificados geneticamente, tais como polihidroxialcanoatos (PHA) e polipeptídios similares à elastina.

 

 

  Em síntese, existe um vasto mercado a ser conquistado pelos bioprodutos, sendo os bioplásticos um dos múltiplos exemplos. Substituir petróleo por biomassa encontrará forte respaldo social, pelos ganhos ambientais. Para o agronegócio significa uma enorme oportunidade de otimizar o aproveitamento integral de produtos agrícolas, em especial de resíduos e efluentes do seu processamento, portanto sem competição direta com a produção de alimentos.  

Glicerina, biocombustíveis e bioprodutos

Décio Luiz Gazzoni

Introdução

A glicerina é um produto químico com múltiplas utilidades, havendo mais de 2.000 aplicações conhecidas em cosméticos, alimentos, química fina, e outros usos como insumo ou produto final. Devido ao aumento recente na produção de biocombustíveis líquidos, a glicerina - que é um subproduto da produção de biodiesel - tornou-se abundante, demandando inovações que possam aumentar a demanda, para equilibrar a oferta ascendente.

 

Considerando a associação muito forte entre a produção de biocombustíveis e de glicerina, não apenas a atual indústria de biodiesel, porém a perspectiva de biocombustíveis de segunda geração, como bioetanol celulósico e biodiesel de algas continuará a produzir grandes quantidades de glicerina. No entanto, novas rotas associadas à demanda da indústria de biocombustíveis, como glicerina-para-metanol e glicerina-para-etanol podem mudar rapidamente a situação do mercado.

 

O que é hoje um coproduto de baixo custo pode tornar-se um recurso valioso para os seus próprios processos de produção. Isso poderia mudar rapidamente a situação do mercado para outras indústrias, que agora contam com o fornecimento de glicerina da indústria de biocombustíveis. O fulcro da presente análise é a extraordinária dinâmica e as perspectivas do mercado de glicerina, nos próximos anos.

Um recurso promissor

Historicamente, a produção de glicerina provém da indústria de sabão, um processo do qual a glicerina é um subproduto, ou sintetizada a partir de matérias-primas do petróleo, como o propileno.

A glicerina é usada numa ampla variedade de aplicações, desde produtos farmacêuticos e alimentos até explosivos. Durante a última década houve excesso de produção, devido ao impulso na produção de biodiesel, causando descompasso entre oferta e procura do produto. As antigas linhas de produção de glicerina viram suas margens de lucro despencarem, com a queda de seu preço no mercado. Algumas indústrias encerraram suas atividades ou dirigiram a produção para outros produtos finais. Considerando tratar-se de um produto químico versátil, registrou-se um aumento substancial nas pesquisas objetivando o desenvolvimento de novos produtos à base de glicerina.   Pagliaro et al. publicaram uma revisão em 2007, revista em 2009, que apresenta numerosos exemplos industriais de conversão de glicerina e aplicações em produtos e usos inovativos. Posteriormente os trabalhos de Johnson e Taconi, da Silva et al., Fan e Burton e Stelmachowski, apresentaram as possibilidades de conversão tanto termoquímica quanto biológica da glicerina para obtenção de combustíveis e outros produtos químicos. A longa lista de produtos químicos e intermediários que podem ser produzidos a partir de glicerina inclui 1,3-propanodiol, vários éteres de butilo, ácido propiônico, β-caroteno, epicloridrina, etanol, metano, gás de síntese, e hidrogênio.   As rotas propostas para estes compostos incluem fermentação por bactérias e fungos, reforma a vapor, reforma em fase líquida, pirólise e gaseificação. No entanto, não havia um estudo robusto com foco em como o mercado de glicerina vai continuar a se desenvolver, analisando possíveis obstáculos para as novas tecnologias baseadas em glicerina até a publicação do artigo de Bauer e Huteberg, que permite desanuviar os caminhos futuros.

 

Os primeiros desenvolvimentos

A produção de glicerina industrial fechou um círculo completo no que diz respeito à tecnologia de matéria-prima. Historicamente, a glicerina era obtida a partir de gorduras e óleos, como um subproduto na indústria de sabões. O processo consiste em misturar as gorduras ou óleos com soda cáustica, em alta temperatura, para formar sabão e glicerina. A obtenção de glicerina por fermentação de açúcares é uma rota conhecida desde meados do século XIX, e foi usado industrialmente durante a Primeira Guerra Mundial, devido à alta demanda por glicerina para produção de explosivos. Devido ao seu alto custo, esta rota não vinha sendo utilizada e, com o surgimento da indústria de biodiesel, pode ser considerada fora do mercado.  

Em meados do século XX, a produção de glicerina sintética aumentou de forma rápida, passando a responder por cerca de metade do mercado nos anos 1960 e 1970. A síntese da glicerina a partir de propileno segue três vias principais. O primeiro processo, desenvolvido nos anos 1940, usa cloreto de alila como um intermediário, que é então convertido em epicloridrina. Usando hipoclorito é promovida a hidrólise de epicloridrina, obtendo-se a glicerina. Um segundo caminho foi desenvolvido na década de 1950 e elimina o uso de cloro, sendo o propeno oxidado para acroleína. A acroleína é convertida em álcool alila e, em seguida, glicidol, o qual é hidrolisado para glicerina. A terceira rota converte propeno a óxido de propileno, em sua primeira etapa, que é o isomerizado para álcool alila, o qual através de glicidol é convertido em glicerina.

 

Em 1990, esta produção baseada em combustíveis fósseis foi responsável por 30% da produção de glicerina. Recentemente, estas rotas entraram em declínio comercial, devido à saturação do mercado com glicerina obtida na transformação do biodiesel, de menor custo. Em algumas das plantas industriais que produziam glicerina sintética houve até reversão do processo, sendo a glicerina usada para produzir epicloridrina, que é um insumo para outros produtos químicos.

 

A demanda tradicional de glicerina é estimada entre 750.000 e 1 milhão de toneladas anuais em aplicações que incluem creme dental, plásticos, celofane, medicamentos, cosméticos e tabaco (Figura 1).  

Figura 1. O mercado de glicerina para aplicações tradicionais.

 

 

No tabaco, a glicerina é usada como um aditivo para o revestimento das folhas, para impedir sua ondulação durante o processamento. Na cosmética, é utilizada em cremes e loções como um amaciador da pele. Na indústria alimentar é usada como meio de transferência de calor em contato direto com alimentos de congelamento rápido, e como um lubrificante em máquinas e aparelhos de processamento de alimentos. É também usada para adoçar produtos alimentares, em substituição a outros polióis, como o sorbitol. As muitas aplicações para glicerina são uma consequência das suas propriedades e características: glicerina é solúvel em água, doce, inodora, não tóxica, incolor, biodegradável, plastificante, sendo absorvente de água.

 

Situação atual e perspectivas

O uso de biocombustíveis líquidos provavelmente continuará a aumentar, devido às políticas públicas que visam à redução do impacto ambiental e à soberania energética. Projeções sobre o mercado de biocombustíveis líquidos mostram que a produção de bioetanol continuará a crescer mais rápido do que o biodiesel, porém ambos aumentarão, progressivamente, até o final da década, como pode ser observado na Figura 2.

Atualmente, a oferta de glicerina no mercado é majoritariamente proveniente da produção de biodiesel. No entanto, existe também a possibilidade de extrair a glicerina coproduzida na fermentação de etanol, um processo pouco conhecido, estudado ou divulgado.

A glicerina bruta pode ser dividida em duas classes principais: a glicerina bruta hidrolisada, que é derivada da hidrólise dos triglicérides e contém traços de sais inorgânicos; e a glicerina salgada, obtida residualmente da indústria de sabões e da indústria de biodiesel. Ambas podem ser refinadas para grau alimentício ou farmacêutico. A glicerina bruta, proveniente da produção de biocombustíveis, é especialmente interessante como matéria-prima para os produtores da Europa, uma vez que é creditada como emissão zero de dióxido de carbono, até o processo de coleta. Também é muito importante para a indústria brasileira de biodiesel, por ser parte do seu mix de rentabilidade.

 

Figura 2. Estatísticas recentes e projeções para a produção de biocombustíveis líquidos.

Fontes: Organization for Economic Co-operation and Development and Food and Agriculture Organization of the United Nations, OECD-FAO Agricultural Outlook 2011-2020. Rome: FAO, pp. 77–93 (2011).

International Energy Agency (IEA), em Medium-term Oil & Gas Markets 2010. International Energy Agency, Paris, pp. 91–99 (2010).

 

 

 

Glicerina e biodiesel

Com a produção de biocombustíveis líquidos em larga escala, a oferta de glicerina tem se situado em nível superior à demanda. Isto se deve ao fato de que a glicerina é um coproduto inevitável da produção de biodiesel, que aumentou de quase nada para mais de 2 milhões de toneladas por ano, em pouco mais de uma década.   No processo de produção de biodiesel, os triglicérides (óleos vegetais) são transesterificados com um álcool, normalmente metanol, para formar ésteres de ácidos graxos - o biodiesel. A glicerina, que constitui a espinha dorsal dos triglicérides, e representa 10% dos resultantes da reação, é liberada no processo e depois separada do biodiesel. A reação de transesterificação gera duas fases: uma fase oleosa, que contém os ésteres de ácidos graxos; e uma fase polar, contendo glicerina (50-60 %), metanol (10-30%), sais do catalisador (8-20%), água (<5%), e alguns sabões, ácidos graxos livres e outros componentes presentes na matéria-prima.

A fase polar é processada para recuperar o máximo de metanol, e os sais do catalisador são neutralizados pela adição de um ácido, tal como o ácido sulfúrico. Depois do pós-processamento, neutralização e lavagem, a glicerina bruta proveniente da produção de biodiesel contém cerca de 80% de glicerina, 10% de água, 7% de cinzas, e menos de 1% de metanol.   O biodiesel é produzida de forma convencional, com um catalisador alcalino homogêneo (NaOH ou KOH), embora catalisadores ácidos também sejam usados em alguns processos industriais. Catalisadores enzimáticos, com uma maior tolerância para a presença de água, foram desenvolvidos mas ainda não são economicamente viáveis. O uso de catalisadores heterogêneos seria útil para reduzir a contaminação da glicerina produzida, reduzindo também a necessidade de adição contínua de catalisador no processo. Pesquisas sobre catálise heterogênea para a produção de biodiesel estão em curso9, e, apesar de projetos completos que a utilizam estarem disponíveis, a abordagem tradicional ainda é a mais comum, embora já existam usinas em operação, utilizando catalisadores heterogêneos.

 

 

Glicerina e bioetanol

Outra oportunidade prontamente disponível para a glicerina bruta é na indústria de bioetanol. Ao fermentar açúcares em etanol, o glicerol é simultaneamente produzido pela levedura. Esta glicerina é importante na produção de vinho, mas um subproduto indesejado da produção industrial de bioetanol como combustível. Pesquisas demonstraram que os níveis de produção de glicerina, em comparação com etanol, situam-se entre 5 e 15% (w/w), dependendo da matéria prima e das condições do processo. No entanto, essa glicerina não é tão facilmente recuperada quanto na produção de biodiesel, pois é apenas um componente no complexo de produtos resultantes da fermentação.

 

Este fluxo também contém outros compostos químicos, os quais serão de interesse em uma futura biorefinaria integrada, tal como ácido acético, ácido succínico, e outros ácidos orgânicos e álcoois superiores. A extração de glicerina deste fluxo residual não é economicamente viável, mas estudos revelam ser possível aumentar a produção de glicerina na fermentação de etanol, para se obter volumes de glicerina adequados para extração.

 

Entretanto, este processo não seria factível com o mercado atual e com as instalações de fermentação existentes, viabilizando-se apenas quando houver uma demanda maior e não atendida de glicerina, e quando as atuais usinas de etanol efetivamente operarem no conceito de biorefinaria, deixando de maximizar a produção de etanol para melhorar o rendimento total de compostos extraíveis, no bojo de uma estratégia de maximização da lucratividade industrial.

  Estimativas conservadoras indicam que a glicerina que pode ser extraída nas indústrias de bioetanol seria de 3% (w/w) do etanol produzido, um volume muito maior do que a glicerina proveniente da produção mundial de biodiesel, posta a diferença de magnitude na produção dos dois biocombustíveis. Supondo-se que uma proporção maior da glicerina possa ser produzida no processo de fermentação de etanol (6 ou até 10%), a oferta potencial desta fonte é muito grande.   No entanto, dificilmente este recurso ficará disponível para o mercado, pois pesquisas recentes de fermentação microbiana de glicerina para o etanol obtiveram resultados muito positivos. Transformar, na própria indústria, resíduos (glicerina) em produto (etanol) será muito interessante para os produtores de etanol, se um processo viável, em escala industrial, for desenvolvido.
A Figura 3 apresenta estimativas da produção mundial de glicerina, a partir de biocombustíveis, conforme estimativas efetuadas em um estudo conjunto da FAO e da OCDE.  

Figura 3. Estimativa da produção mundial de glicerina a partir de processos de produção de biocombustíveis líquidos.

 

Perspectivas para o longo prazo

Na perspectiva de mais longo prazo, há várias oportunidades para um fornecimento estável de glicerina, se as tecnologias para transformá-la em produtos químicos de alto valor forem utilizadas em larga escala. Uma fonte promissora para obtenção de produtos químicos e combustíveis, a partir de matéria prima renovável, são as microalgas, que têm sido estudadas intensamente para diferentes aplicações - apesar de a produção de biodiesel atrair o maior interesse dos grupos de pesquisa. As possibilidades e obstáculos para produzir biocombustíveis utilizando microalgas foram discutidas em profundidade por Pienkos e Darzine.   As microalgas têm recebido muita atenção nos últimos anos, por apresentarem alta produtividade e poderem ser cultivadas sem competir por terras aráveis com a produção de alimentos, com perspectivas de produzir grandes quantidades de óleo a custo mais baixo que oleaginosas tradicionais. No caso de algas podem ser usados solos efetivamente áridos, ou sua produção pode ocorrer diretamente no oceano, ao contrário do apregoado para vegetais não édulos (pinhão-manso ou camelina), os quais disputam terra, insumos, capital e trabalho que poderiam ser utilizados para produção de alimentos. Entretanto, o mercado ainda aguardando o desenvolvimento de processos produtivos em larga escala, com baixo custo e grande eficiência. A eventual produção em grande escala de combustíveis de algas geraria uma quantidade ainda maior de glicerina.   Outro método seria o de utilizar algas para produzir diretamente a glicerina, usando microalgas do gênero Dunaliella. Estas algas têm a vantagem de produzir glicerina em grandes quantidades e com rendimentos elevados, podendo ser cultivadas em meios com concentrações salinas elevadas. O uso destas altas concentrações salinas evita, eficazmente, a contaminação de outros organismos vivos e, assim, garante um processo de produção eficiente.

 

Estratégias comerciais

Sem ingressar nos detalhes das tecnologias de novos produtos à base de glicerina, que estão em desenvolvimento, três opções mercadológicas genéricas, vinculadas ao negócio de biocombustíveis, podem ser identificadas. Estas estratégias, relacionadas com o produto final do processo industrial, são determinadas pelo preço e pelo volume do produto, as quais podem ser denominadas de alto, médio ou baixo valor. A possibilidade de sucesso e viabilidade econômica para essas estratégias é, naturalmente, relacionada com os fluxos de matérias-primas que estão disponíveis, a qualidade de matéria-prima necessária para o processo específico, e o custo da matéria prima.

  Os produtos com alto valor são especiarias químicas com preço específico muito elevado, porém o volume requerido pelo mercado é baixo, sendo um mercado pouco elástico e de baixa dinâmica. Embora os preços elevados para essa classe de produtos químicos constituam uma boa motivação para desenvolver um processo, deve-se reconhecer o risco iminente de flutuações indesejáveis do mercado, em especial deixando de ser comprador.  

O ocorrido recentemente no mercado da glicerina é um bom exemplo: um produto químico previamente vendido a um preço alto parecia ser uma boa fonte de renda para um subproduto da fabricação de biodiesel, mas o grande fluxo do produto rebaixou os preços, e provocou o colapso do mercado. O mesmo pode acontecer com outros produtos químicos neste segmento de mercado, ou seja, o desenvolvimento de um processo de produção suficientemente barato para competir com os métodos atuais de produção, pode transformar perspectivas de lucros promissores em prejuízo.

 

Assim, desenvolver e investir em novos processos visando um segmento de mercado muito limitado constitui um alto risco, mesmo que o lucro inicialmente possa ser elevado. Nesta categoria incluem-se especiarias químicas da química fina ou compostos utilizados nas indústrias farmacêuticas e de alimentos funcionais.   Produtos com média valorização constituem outro segmento do mercado de produtos químicos, com preços mais moderados, mas com maior demanda do mercado. Assim, a estabilidade do mercado desses produtos químicos pode ser maior, por exemplo, se eles forem usados em muitas aplicações diferentes, ou em grandes quantidades em algumas indústrias. A necessidade de otimização do processo pode ser maior nesta estratégia de valorização, mas há maior previsibilidade nas receitas futuras.   As categorias de produtos dentro desse segmento são os monômeros para os bioplásticos e outros polímeros de base biológica, materiais para os quais o interesse está aumentando de forma firme e constante.

 

 

Finalmente, o mercado para produtos de baixo valor é composto por aqueles que requerem matéria-prima em grande quantidade e de mais baixo custo, tornando os produtos finais disponíveis a baixo custo e em grandes volumes. Os lucros por quantidade específica são necessariamente mais baixos para esses produtos, mas os altos volumes de venda tornam esta estratégia mais conservadora e segura.   O principal tipo de produto nesta estratégia são os biocombustíveis. A estratégia consiste em amortizar os custos de investimento e operação, e garantir margem mínima com a venda de grande quantidade de biocombustíveis. A ampliação da margem do investidor impõe uma estratégia de valorização de matérias-primas de baixa qualidade, como a glicerina bruta com alto teor de sal ou ácidos carboxílicos, e usar os recursos e a infraestrutura existentes para a elaboração de produtos de maior valor agregado, ou seja, capturando parte do mercado de média ou alta valorização.  

De acordo com a teoria econômica, o processo capaz de agregar maior valor à matéria-prima com o menor custo vai dominar o mercado. Como já foi mencionado anteriormente, diversas tecnologias, estão sendo desenvolvidas para uso da bioglicerina. Algumas dessas tecnologias demandam, simplesmente, extrair a glicerina bruta, utilizando as instalações convencionais de produção de biodiesel. Tecnologias adaptadas ao uso de glicerina de mais baixa qualidade serão vantajosas se permitirem adicionar um valor ao produto maior do que o custo de refino da glicerina para os graus necessários para outras aplicações.

 

  No entanto, os custos de transação e outros fenômenos que perturbam o mercado ideal devem ser sempre analisados. Os impostos são perturbações do mercado, e podem ter uma incidência menor em combustíveis renováveis do que em outros produtos químicos. Examinando por este ângulo, usar a glicerina para a produção de biocombustível pode ser uma alternativa promissora. Como mencionado, existem rotas alternativas para transformar glicerina em biocombustíveis, que estão sendo pesquisadas. Porém o aspecto crucial é dispor da segurança de que alguma delas vai ser viável técnica e economicamente, competindo favoravelmente com as alternativas já posicionadas no mercado. Como os maiores fornecedores de glicerina serão os produtores de biodiesel e bioetanol, a disponibilidade in house desse insumo pode ser determinante para viabilizar mercadologicamente biocombustíveis baseados em glicerina.  

 

Considerações finais

Particularmente, as instalações de biodiesel pode ter a oportunidade de fechar o circuito matriz-produto, produzindo metanol da glicerina, eliminando a necessidade de aquisição de metanol proveniente do gás natural, transformando o biodiesel em um produto completamente renovável. Este "carimbo top" ambiental, se bem explorado mercadologicamente, possui um enorme potencial de agregação de valor e de aceitação social. Por outro lado, a indústria de bioetanol pode expandir a produção deste biocombustível, fermentando glicerina para bioetanol, em um segundo processo de fermentação.   As possibilidades para a utilização em larga escala de glicerina provenientes da indústria do bioetanol dependem integralmente da possibilidade de sua extração eficaz e a baixo custo, posto que, nas instalações atuais, não é possível extrair a glicerina resultante do processo de fermentação. O aumento da produção de glicerina em processos de fermentação de etanol, pode, em tese, aumentar drasticamente a oferta global de glicerina, especialmente nos EUA e no Brasil. Nesse cenário, a glicerina provavelmente continuaria disponível no mercado, a um custo baixo, nas próximas três décadas.   Admitida esta possibilidade, serão favorecidos aqueles países ou indústrias particulares que investirem em desenvolvimento tecnológico continuado, para dispor de inovações que permitam o aproveitamento da glicerina e a ampliação de sua margem. Um detalhe dentro deste quadro maior: tecnologias viáveis para a conversão de glicerina em combustíveis líquidos poderia, no entanto, ter o efeito contrário, ou seja, perturbar o mercado de glicerina, pois, neste caso, tratar-se-ia de avançar mais no mercado de baixo valor, havendo espaço mercadológico para colocação dos volumes adicionais de biocombustíveis produzidos com glicerina. No entanto, mesmo este último aspecto não obnubila a tese maior: o maior espaço do mercado de produtos à base de glicerina pertencerá a quem detiver a melhor tecnologia, mais eficiente e de menor custo.

 

 

 

ILUC – Parte I

Décio Luiz Gazzoni

 

Introdução

A sigla ILUC (Indirect Land Use Change) é o mais recente terror dos governos e do setor privado, interessados na exportação de biocombustíveis para a Europa, Japão e EUA. De acordo com os defensores da tese, é a melhor forma de evitar desmatamento associado à produção de bioombustíveis, mesmo que induzido à longa distância. Neste particular, a teoria reza que o aumento de produção de biocombustíveis em um determinado país pode levar à redução da sua área de produção de alimentos. Além disso, por ação do mercado, outro país, que pode estar situado a 20.000 km de distância, desmataria a floresta para substituir a área de alimentos que desapareceu no país que produzir biocombustíveis.

  Para os críticos externos, os países que incorporam esta tese polêmica em seus regulamentos, incapazes de competir na área com o Brasil, inventam barreiras técnicas a todo o instante, para barrar as importações de países mais competitivos. Essa seria mais uma delas, na esteira do desmonte da teoria de que biocombustíveis competiam com a produção de alimentos. Para os produtores de biocombustíveis do Hemisfério Norte que, no final, também são prejudicados, há sempre a ilação da atuação dos poderosos lobbies do petróleo, gás e carvão. Esta série de dois artigos pretende resgatar a evolução da discussão sobre o tema e a sua incorporação na legislação dos EUA e da Europa, sem expressar juízo de valor a respeito.

 

Contexto

O impacto no uso da terra para produção de biocombustíveis relaciona-se com a liberação não intencional de emissões de carbono, devidas às mudanças de uso da terra ao redor do mundo, as quais seriam induzidas pela expansão das áreas de cultivo para a produção de etanol ou biodiesel, em resposta ao aumento da demanda global de biocombustíveis. Como os agricultores, em todo o mundo, respondem aos preços agrícolas mais elevados, a fim de manter o equilíbrio entre a oferta e demanda global de alimentos, as terras ainda não utilizadas substituiriam as culturas de alimentos que foram desviados para outro lugar para a produção de biocombustíveis.  

A tese subjacente a esta afirmativa é de que áreas não utilizadas anteriormente, como florestas e pastagens, armazenam carbono no solo, proveniente da biomassa das plantas. A mudança de uso para outros cultivos, especialmente anuais, provocaria um aumento líquido das emissões de gases de efeito estufa. Devido a essa mudança no estoque de carbono do solo, e da própria biomassa de cobertura, a mudança indireta do uso da terra teria consequências no balanço de GEE de um biocombustível.

 

Alguns autores vão muito além do tema sequestro de carbono, e argumentam que as mudanças indiretas do uso da terra produzem outros impactos sociais e ambientais significativos, afetando a biodiversidade, a água, os preços dos alimentos, a posse da terra, a migração dos trabalhadores e estabilidade cultural da comunidade.   As estimativas de intensidade de carbono de um determinado biocombustível dependem dos pressupostos efetuados sobre diversas variáveis. A partir de 2008, vários estudos de ciclo de vida completo estabeleceram que o etanol de milho, o etanol celulósico e etanol de cana brasileiro produzem emissões de gases de efeito estufa menores do que a gasolina. Entrementes, a maioria dos estudos não considerou os efeitos indiretos, decorrentes das mudanças de uso da terra, pois, embora reconhecidas, a estimativa foi considerada muito complexa e difícil de modelar.

A formulação teórica

Um artigo tão curto quanto controverso, publicado em fevereiro de 2008 por Searchinger e colaboradores, concluiu que o uso do etanol de milho, ao invés de reduzir em cerca de 20% as emissões como geralmente aceito, dobraria as emissões no período inicial de 30 anos na mesma área, prosseguindo com emissões positivas por 167 anos. Caso a produção de etanol ocorresse com switchgrass substituindo as áreas de milho, as emissões aumentariam em 50%. Para o etanol de cana, a equipe concluiu que, após quatro anos, as emissões passavam a ser menores que aquelas da gasolina.   O artigo da equipe do Dr. Searchinger sobre a estimativa de emissões de carbono da ILUC, juntamente com o debate alimentos versus combustível, tornou-se uma das questões mais controversas relacionadas aos biocombustíveis, debatidas na mídia popular, revistas científicas e cartas públicas da comunidade científica, gerando reações da indústria do etanol, tanto americana quanto brasileira.

A ILUC e os regulamentos

Esta controvérsia se intensificou em abril de 2009 quando o California Air Resources Board (CARB) exarou um conjunto de regras que incluem impactos da ILUC para estabelecer a norma California Low Carbon Fuel Standard, que entrou em vigor em 2011.

  Em maio de 2009, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos EUA divulgou um aviso de proposta de regulamentação para modificação da norma Renewable Fuel Standards (RFS) de 2007, incluindo a ILUC, causando polêmica adicional entre os produtores de etanol. O regulamento final, emitido em 3 de fevereiro de 2010, incorporou a ILUC com base em modelagem que foi melhorada significativamente ao longo tempo, contrastada com as combatidas estimativas iniciais.

O programa do Reino Unido denominado UK Renewable Transport Fuel Obligation requer que a Agência de Combustíveis Renováveis (RFA) denuncie potenciais impactos indiretos da produção de biocombustíveis, incluindo mudança do uso indireto da terra ou alterações na produção de alimentos e de outras commodities. Um estudo da RFA de julho de 2008, conhecido como Gallager Review, referiu vários riscos e incertezas, e que a "quantificação das emissões de GEE resultantes da mudança indireta no uso da terra exige pressupostos subjetivos e contém uma grande incerteza", e exigiu uma análise mais aprofundada para incorporar adequadamente os efeitos indiretos em metodologias de cálculo.  

Em dezembro de 2008, o Parlamento Europeu adotou critérios de sustentabilidade mais rigorosos para os biocombustíveis, impondo à Comissão Europeia o desenvolvimento de uma metodologia que considere as emissões de GEE decorrentes da mudança indireta do uso da terra.

 

Estudos e controvérsia

Estudos de ciclo de vida completo (WTW) anteriores a 2008 estabeleceram que o etanol de milho reduz consistentemente as emissões de gases de efeito estufa do setor de transportes. Em 2007, uma equipe da Universidade da Califorina em Berkeley liderada por Farrel, avaliou seis estudos anteriores, concluindo que o etanol de milho reduz as emissões de GEE em apenas 13 %, um decréscimo em relação a 20 a 30 % de redução para o etanol de milho, e 85 % para o etanol celulósico, valores estimados por Wang (Argonne National Laboratory), o qual revisou 22 estudos realizados entre 1979 e 2005, efetuando simulações com o modelo GREET.   As estimativas de intensidade de carbono dependem da produtividade das culturas, das práticas agrícolas, das fontes de energia para produzir o etanol, e da eficiência energética da destilaria. Vários estudos sobre o etanol de cana brasileiro mostram que a cana como matéria-prima, reduz as emissões de GEE entre 86 e 90 %, sem considerar mudança significativa do uso da terra. Exemplos de intensidade de carbono de etanol, de diferentes procedências e produzidos a partir de diversas matérias primas, são apresentadas na Figura 1.

 

Figura 1. Intensidade de carbono do bioetanol e de combustíveis fósseis.

Fonte: Adaptado de dft.gov.uk\pgr\roads\environment\rtfo\govrecrfa.pdf

 

 

Fargione e sua equipe publicaram um trabalho alegando que a incorporação de áreas com cobertura natural para a produção de matéria-prima para biocombustíveis, cria um déficit de carbono estocado no solo, ocasionado pela sua liberação na forma de emissões. Esse déficit se aplica tanto a mudanças diretas quanto indiretas do uso da terra. O estudo analisou seis cenários de conversão: Amazônia brasileira para o biodiesel de soja; Cerrado brasileiro para o biodiesel de soja; Cerrado brasileiro para o etanol de cana; várzea tropical na Indonésia ou Malásia com biodiesel de palma; florestas turfosas tropicais da Indonésia ou Malásia com biodiesel de palma; e pastagem na região central dos EUA para etanol de milho.

O déficit de carbono foi definido como sendo a quantidade de CO2 originalmente estocado que seria liberado durante os primeiros 50 anos após a conversão das terras. Para as duas matérias-primas mais comuns para produção de etanol, o estudo concluiu que o etanol de cana, produzido em terras naturais do cerrado, levaria 17 anos para zerar o déficit de carbono, enquanto o etanol de milho, produzido em pradarias centrais dos EUA, necessitaria de cerca de 93 anos para zerar o déficit. O pior cenário é a conversão da floresta tropical da Indonésia ou Malásia para a produção de biodiesel de palma, o que exigiria cerca de 420 anos para extinguir o déficit.

 

 

 

Crítica e polêmica

Os estudos Searchinger e Fargione criaram acirrada polêmica nos meios de comunicação, em revistas científicas, e até merecendo uma referencia em um livro do Dr. Robert Zubrin, o qual observou que a abordagem "análise indireta" de Searchinger é pseudocientífica e pode ser usada para "provar nada".   Wang e Haq do Argonne National Laboratory afirmaram em carta à revista Science que os pressupostos de Searchinger e Fargione eram ultrapassados, que ignoraram o potencial de aumento da eficiência, não havendo evidência de que "a produção de etanol de milho dos EUA já houvesse causado, até o momento, efeitos indiretos do uso da terra em outros países." Eles concluíram que Searchinger demonstrou que a ILUC "é muito mais difícil de ser comprovada cientificamente do que o modelo de mudanças diretas no uso da terra". Em sua resposta Searchinger refutou cada objeção técnica e afirmou que "... qualquer cálculo que ignore essas emissões, apesar do desafio de prevê-los com certeza, é muito incompleto e não deveria servir como base para decisões políticas".

 

  Outra crítica, aposta por Kline e Dale, do Oak Ridge National Laboratory, considerou que Searchinger et al. e Fargione et al. "... não fornecem suporte adequado para sua alegação de que biocombustíveis causam altas emissões, devido à mudança no uso da terra, posto que as suas conclusões estão baseadas em uma premissa incorreta, porque pesquisas de campo, mais abrangentes que os modelos teóricos, estabeleceram que essas mudanças no uso da terra são movidas por interações entre as forças culturais, tecnológicas, biofísicas, ambientais, econômicas e demográficas, dentro de um contexto mutante dos pontos de vista espacial e temporal, sendo o menos importante a cultura a ser implantada". A esta crítica, Fargione et al. responderam apenas parcialmente, observando que, embora muitos fatores contribuíram para o desmatamento, "esta observação não diminui o fato de que os biocombustíveis também contribuem para o desmatamento se forem produzidos em terras agrícolas já existentes, ou em terras recém-desmatadas." De sua parte, Searching discordou de todos argumentos de Kline e Dale, porém sem acrescentar fatos ou proposições novas.  

 

A indústria de biocombustíveis dos EUA também reagiu, afirmando que o "estudo de Searchinger é, claramente a análise do pior cenário possível "e que este estudo se baseia em uma longa série de suposições altamente subjetivas". Searchinger refutou as críticas da NFA, afirmando que eram inválidas. Ele observou que, mesmo se alguns de seus pressupostos são estimativas elevadas, seu estudo também fez muitas suposições conservadoras.

  Em fevereiro de 2010, Lapola et al publicaram um artigo em que afirmam que a expansão planejada de plantações de cana e soja no Brasil para produzir biocombustíveis, até 2020, substituiria pastagens, com pequeno impacto direto do uso da terra sobre as emissões de carbono. No entanto, a expansão da fronteira das pastagens na área de florestas da Amazônia, deslocadas pelo plantio de cana, provocaria efeitos indiretos nas emissões. De acordo com esses autores, "O etanol de cana e biodiesel de soja contribuem com cerca de metade do desmatamento indireto projetado de 121.970 km2 em 2020, criando um déficit de carbono que levaria cerca de 250 anos para ser compensada".

 

 

Os mesmos autores (Lapola et al.) afirmam que o óleo de palma poderia causar o mínimo de mudanças de uso da terra e do débito de carbono a ele associado. O modelo por eles utilizado identificou que o aumento da taxa de lotação de gado de apenas 0,13 cabeça por hectare (aproximadamente 10%) em todo o país (Brasil), pode evitar as mudanças indiretas no uso da terra causados pelos biocombustíveis, sem afetar também a oferta de alimentos. Os autores concluem que a intensificação da pecuária e o incentivo ao óleo de palma são necessários para atingir poupanças efetivas nas emissões de carbono.  

Coincidentemente, essa é a postura do Governo brasileiro e faz parte do Plano Brasil 2022, elaborado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, de cuja elaboração o autor da presente análise participou. A estratégia foi aprovada antes da veiculação dos resultados de Lapola et al, baseada na necessidade de uma postura firme e agressiva do Governo Brasileiro em relação ao tema, a ser apresentada na Reunião de Copenhagen sobre Mudanças Climáticas, realizada em dezembro de 2009.

 

  Em decorrência da estratégia traçada pela SAE, o MAPA lançou três programas: o primeiro incentiva o plantio de dendê (palma de óleo); o segundo financia a recuperação de pastagens degradadas; e o terceiro incentiva o uso de tecnologias de baixas emissões (Plano ABC). Posteriormente, em resposta a Lapola, a principal organização da indústria brasileira de etanol (UNICA), comentou que a intensificação contínua da produção de gado já se encontrava em curso.

 

Um estudo realizado por Arima et al., publicado em maio de 2011, utilizou um modelo de regressão espacial para fornecer a primeira avaliação estatística de ILUC para a Amazônia brasileira, com foco na cultura de soja. Anteriormente, os impactos indiretos das culturas de soja eram analisados por meio de modelos de demanda em escala global, enquanto o estudo teve uma abordagem regional. A análise mostrou ligação entre a expansão das plantações de soja em áreas agrícolas no sul e no leste da bacia amazônica, com o avanço de pastagens na fronteira da floresta. Segundo os autores, os resultados demonstram a necessidade de incluir a ILUC para medir a pegada de carbono da cultura da soja, tanto para produzir biocombustíveis quanto para outros usos finais.  

O estudo de Arima et al. foi baseado em 761 municípios localizados na Amazônia Legal e identificou que, entre 2003 e 2008, as áreas de soja na região cresceram 39,1 mil km2, principalmente no Mato Grosso. O modelo mostrou que o aproveitamento de 10% (3.910 km2) das áreas de pastagens antigas para plantio de soja, reduziria o desmatamento em até 40% (26.039 km2) em municípios densamente florestados da Amazônia brasileira. A análise demonstraria que o deslocamento da produção de gado, devido à expansão agrícola, impulsiona a mudança do uso da terra em municípios localizados a centenas de quilômetros de distância, e que a ILUC na Amazônia não é mensurável, mas o seu impacto seria significativo.

 

Implementação dos regulamentos

Apesar da polêmica estabelecida, e das restrições que ainda persistem, o conceito de ILUC passou a permear políticas públicas no Hemisfério Norte. Em 23 de abril de 2009, o California Air Resources Board (CARB) aprovou as regras específicas e os valores de referência de intensidade de carbono para o regulamento denominado Califórnia Low Carbon Fuel Standard (LCFS), que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2011, e que passou a incluir a ILUC.  

Para alguns biocombustíveis, o CARB identificou mudanças de uso da terra como uma fonte significativa de emissões de GEE adicionais. O Board estabeleceu um padrão para a gasolina e combustíveis alternativos, e para o diesel e de seus substitutos, conforme apresentado na Tabela 1.

 

Tabela 1. Valores de intensidade de carbono para gasolina, diesel e combustíveis substitutos, em gramas de CO2 equivalente liberados por MJ de energia produzida.

Combustível

Intensidade de carbono (1)

(1)+LUC

Bioetanol de milho do Meio Oeste

75,10

105,10

Gasolina da Califórnia 

95.86

95.86

Diesel da Califórnia (ULSD)

94,71

94,73

Bioetanol da Califórnia

50,70

80,70

Bioetanol de cana do Brasil

27,40

73,40

Biodiesel de soja do Meio Oeste

26,93

68,93

Diesel renovável de soja do Meio Oeste

28,80

68,93

Etanol celulósico de florestas cultivadas

2,40

20,40

Biometano

11,26

11,26

Fonte: http://www.arb.ca.gov/regact/2009/lcfs09/res0931.pdf.

 

O processo de consulta pública antes da decisão do CARB, e a própria decisão, foi controversa, sendo a ILUC o tema mais polêmico. Em 24 de junho de 2008, 27 cientistas e pesquisadores enviaram uma carta pública, em que afirmavam: "Como pesquisadores e cientistas atuando no campo da biomassa para a conversão em biocombustíveis, estamos convencidos de que simplesmente não há dados empíricos suficientemente consistentes para embasar qualquer regulamento ou política pública sólida no que diz respeito aos impactos indiretos da produção de biocombustíveis renováveis, no tocante às emissões de carbono. O assunto é relativamente novo, especialmente quando comparado com a vasta base de conhecimento presente na produção de combustíveis fósseis. As análises limitadas disponíveis até o momento são movidas por premissas que, por vezes, carecem de validação empírica e de boa Ciência".

  A organização The New Fuels Alliance, que representa mais de duas dezenas de empresas de biocombustíveis, pesquisadores e investidores, questionou a intenção do Board em incluir os efeitos indiretos da mudança do uso da terra: "Embora seja provavelmente verdade que zero não é o número certo para os efeitos indiretos de qualquer produto no mundo real, aplicar os efeitos indiretos de uma forma fragmentada poderia ter consequências muito graves para o regulamento LCFS. O argumento de que zero não é o número certo não justifica impor outro número errado, ou penalizar um combustível por seus efeitos indiretos, dando a outro combustível passe livre no mercado".

Por outro lado, mais de 170 cientistas e economistas firmaram um manifesto oposto, pedindo que o CARB "...inclua a mudança indireta do uso da terra nas análises do ciclo de vida das emissões de gases de efeito estufa dos biocombustíveis e de outros combustíveis de transporte. Esta abordagem vai incentivar o desenvolvimento de combustíveis sustentáveis, de baixo carbono, evitar conflitos com os alimentos e minimizar os impactos ambientais nocivos. Existem incertezas inerentes à estimativa da magnitude das emissões de uso indireto da terra para produção de biocombustíveis, mas a atribuição de um valor de zero claramente não é suportada pela ciência".

 

Os representantes da indústria reclamaram que a regra final exagerou os efeitos ambientais do etanol de milho, e também criticou a inclusão da ILUC como uma penalidade injusta ao etanol doméstico de milho, pela vinculação do desmatamento nos países em desenvolvimento com a produção de etanol nos EUA. O limite de 2011 para a LCFS significa que o etanol de milho do Centro-Oeste encontrará sérios problemas para ingressar no mercado da Califórnia, a não ser que a intensidade de carbono atualmente fixada seja reduzida, de acordo com a opinião de muitos articulistas e expertos no assunto.

 

A UNICA elogiou a decisão, porém, assim mesmo, solicitou que a CARB aprofundasse os estudos sobre as práticas agrícolas e industriais brasileiras, o que, certamente, reduziria as estimativas de emissões brasileiras.

  Em dezembro de 2009, a Renewables Fuel Association (RFA) e a Growth Energy, dois grupos de lobby do etanol dos Estados Unidos, entraram com uma ação questionando a constitucionalidade do LCFS. As duas organizações argumentaram que o regulamento violou tanto a cláusula de Supremacia quanto a Cláusula de Comércio, comprometendo o mercado de etanol em todo o país.

 

A presente análise continua na segunda parte desta série, a ser publicada em junho, quando serão abordadas as legislações federais dos EUA e da União Europeia.

 

 

 
 
 
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