Riqueza desperdiçada

Décio Luiz Gazzoni

 

Andar pelos rios amazônicos significa ver paisagens paradisíacas. Mas, se trocarmos os óculos idílicos por outros que polarizem as agressões ambientais e as oportunidades comerciais, novos fatos começam a surgir. As serrarias à beira-rio chamam a atenção pelo fato em si. Mas um olhar mais experiente vislumbrará oportunidades onde outros vêem apenas toneladas de restos de madeira, como serragem, lascas, quebras de serraria, pedaços de maneira inaproveitáveis, cascas e aparas. Quando o volume fica muito grande, adota-se a solução que apõe o carimbo final no desperdício: a queimada! A fumaça é um choro da floresta, que faz chorar também o caboclo pela irritação nos olhos, e que significa uma oportunidade comercial desperdiçada.  

A riqueza

Todos os restos de que falamos, mais as árvores derrubadas, porém não aproveitadas por apresentarem buracos, vazios de troncos ou nós, que não foram detectados por ocasião do corte, possuem uma utilidade econômica. Os conhecedores da floresta amazônica estimam que um terço das árvores são ocas. Parte é levada à serraria e o restante abandonado na mata. Algumas toras transportadas até as serrarias também contêm ocos, detectados apenas no momento de serrá-las. O potencial de produção de madeira não se concretizou, portanto as toras são jogadas junto com os restos. Não fora a fartura da floresta e esta madeira seria aproveitada para produzir compensados, aglomerados, ou, em último caso, para queima em caldeiras a fim de produzir energia. A abundância da madeira leva ao desperdício e ao não aproveitamento integral da madeira extraída da mata.

 

 Mudança em andamento

O IBAMA, através de seu Laboratório de Produtos Florestais estima que, dos 50 milhões de metros cúbicos de toras extraídas da Amazônia anualmente, apenas 40% são convertidos em madeira serrada, transacionada no comércio. A maior parte (60%) perde-se na mata, nas serrarias e na indústria madeireira. Perder-se não é um fato definitivo, se for levado avante um projeto para seu aproveitamento econômico. A globalização está chegando à floresta, e com ela a necessidade de certificação florestal, que obriga a racionalização do processo, desde a derrubada até a colocação do produto no mercado.

 

Treinamentos

O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) é uma ONG sediada em Belém-PA, que pretende mudar radicalmente os usos e costumes do setor. A instituição ministra cursos de formação profissional, baseados em seu projeto piloto conduzido há 10 anos, em Paragominas-PA. No projeto foram implementados sistemas de manejo sustentável da floresta. Além dos cursos formais, o Imazon distribui publicações e vídeos técnicos, demonstrando as alternativas para o uso sustentado da floresta. O Fundo Mundial para a Natureza (WWF-Brasil) colabora divulgando a necessidade de certificação da madeira, atraindo para a sua tese tanto os madeireiros quanto os compradores. No aspecto educacional, essa ONG é um parceiro do Imazon na condução de cursos e na divulgação das técnicas de manejo florestal.

 

Governo

Cursos para elaboração de planos de manejo, e a introdução de técnicas de aproveitamento e valorização dos restos de madeira, são ações governamentais, desenvolvidas ou aperfeiçoadas pelo Ibama. Além dos usos tradicionais dos restos da indústria madeireira, o mercado internacional tem um enorme potencial para absorção de briquetes, cuja demanda crescerá exponencialmente no futuro próximo. Trata-se da transformação do pó de serra em blocos de madeira semelhantes a tijolos, que são utilizados para queima em caldeira, produzindo energia ou calor.  A briquetagem, através da compactação dos resíduos da madeira, elimina a umidade e facilita a estocagem e o transporte. Assim, cria-se uma nova fonte de energia a partir dos restos que antes poluíam os rios ou eram queimados a céu aberto. A remadeira é uma técnica que usa pó de serra colorido na elaboração de objetos de artesanato, decoração ou peças como portas, painéis, janelas, divisórias ou objetos de decoração. A técnica é mais sofisticada, exigindo algum conhecimento técnico e mão-de-obra para separar os resíduos, porém recompensa pela agregação de valor. Esses são exemplos de como é possível um uso sustentado da floresta, transformando ameaças em oportunidades, gerando novos negócios e obtendo lucros, reduzindo os custos e a agressão ao ambiente.

 

Guaco, um santo remédio

Décio Luiz Gazzoni 

Minha avó herdou o guaco na coleção de panacéias da minha bisavó, posteriormente legada à minha mãe. O xarope era ministrado sempre que o pigarro pegava na garganta ou o catarro nos pulmões. Mas não era só minha família que o adotava, o guaco é parte da farmacopéia popular. O guaco, uma planta da família das compostas (Mikania glomerata e M. laevigata) era citado nos alfarrábios do início do século passado, com receitas de chás e xaropes expectorantes. 

Atividade
Até pouco tempo associavam-se as suas propriedades terapêuticas ao seu alto teor de cumarina. Investigações do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas da Unicamp descobriram a atividade do guaco na terapia de úlceras, infecções e tumores. Pesquisadores da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (Unicamp) demonstraram a eficiência de lavagem bucal com chá de guaco, para evitar a cárie e a placa dental bacteriana, causada por Streptococcus mutans. As duas espécies de guaco possuem propriedades terapêuticas diferenciadas. Descobriu-se que M. laevigata tem mais atividade antiulcerogênica, por apresentar maior teor de cumarina. A ação antimicrobiana foi mais acentuada na espécie M. glomerata, enquanto a atividade antioncogênica foi similar. Isto se deve ao teor dos ácidos diterpênicos - que apresentam ação sobre os tumores - ser equivalente nas duas espécies.
  Antimicrobiano
Desde 1999 a Unicamp pesquisa o efeito antibiótico do guaco, usando oito linhagens de bactérias patogênicas e o fungo Candida albicans, agente causal da candidíase genital e dos “sapinhos” bucais. Os resultados iniciais demonstraram a ação do guaco, principalmente de M. glomerata, sobre várias bactérias, especialmente quando ao extrato foram adicionados ácidos diterpênicos (anticancerígenos). Comparado com outras 20 espécies vegetais, o guaco evidenciou maior atividade anticárie e antiplaca bacteriana. 

Ação anticancerígena

O guaco contém altos teores de ácidos diterpênicos, que exibem atividade biológica contra alguns tipos de câncer. A Unicamp dispõe de cinco linhagens de células cancerígenas humanas (mama, mama resistente a medicamentos conhecidos, melanoma, leucemia e pulmão). O efeito do guaco inicia com a inibição do crescimento do tumor, culminando com a morte de parte das células doentes. O efeito mais intenso (78% de mortalidade) foi observado sobre células de melanoma, enquanto para as outras linhagens foi registrada a morte de 40% a 50% das células cancerígenas.   Os resultados animaram os pesquisadores, embora cada tumor tenha suas características próprias e é muito difícil identificar uma única substância que atue sobre diferentes formas de câncer. No momento, o efeito do guaco sobre tumores da próstata, ovário, rim e cólon está sendo avaliado, utilizando animais de laboratório. Os cientistas também estão estabelecendo a toxicidade do guaco, pois um dos princípios da alquimia já postulava que “qualquer substância pode ser veneno ou remédio, dependendo de sua dose”. 

 

Estômago e pulmões
Nossos avós não usavam guaco para tratar úlceras, isso era prerrogativa da espinheira santa. Os cientistas da Unicamp demonstraram, em ratos de laboratório que, nas mesmas doses, o guaco possui ação antiulcerígena mais intensa que a espinheira-santa. Concluíram que, tanto os extratos de guaco quanto a cumarina isolada, eram eficientes no tratamento de úlceras. A ação da cumarina ocorre por uma possível inibição da secreção dos ácidos estomacais, bloqueando os receptores da acetilcolina, que é uma substância química que faz a comunicação dos impulsos entre as células nervosas. Nas afecções pulmonares, a cumarina provoca broncoconstrição e aumento de secreção, pelo mesmo mecanismo de bloqueio dos receptores dos impulsos das células nervosas. 
  Oportunidade
Não é apenas o guaco, mas uma série de plantas medicinais que estão sendo estudadas para enriquecimento da farmacopéia, que representa uma excelente oportunidade negocial, pois a produção desses vegetais exigirá cuidados e técnicas especiais para otimizar o processo industrial. A Embrapa e as Universidades já estão desenvolvendo sistemas de produção dessas plantas, que representarão uma alternativa segura e rentável, em especial para as pequenas propriedades e para a agricultura de base familiar.

Créditos de Carbono e o agronegócio

Décio Luiz Gazzoni

Para início de conversa, é importante conceituar "créditos de carbono" e contextualizar sua importância em termos de tempo, espaço e atividade agrícola.

Os cientistas demonstraram a estreita associação entre as emissões de gases como o gás carbônico, o metano e óxidos de nitrogênio e as mudanças climáticas, em especial no longo prazo. Após soar o alarme referente ao aumento dos gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera, e as conseqüências derivadas desse acréscimo, a ONU desenvolveu uma série de negociações que culminaram na formalização do Protocolo de Quioto (PQ), em dezembro de 1997.   Pelo protocolo, os países signatários comprometer-se-iam a reduzir as suas emissões em 5% em relação ao verificado em 1990, durante o período 2008-2012. Uma das estratégias previstas para reverter o despejo de GEE na atmosfera é denominada de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), em cujo contexto são flexibilizadas as exigências para que cada país tenha que atingir a sua meta, de forma que não o seja isolada e estanque.   Pelo mecanismo proposto, o conjunto de países signatários deverá atingir a meta global. Entretanto, cada país individualmente, poderá negociar com outros países de forma que o superávit de contenção de emissões de um país possa ser contabilizado a favor de outro que não tenha atingido a sua própria meta.

 

Esse superávit de contenção de emissões passa a ser denominado "créditos de carbono" e, como tal, assume um determinado valor no mercado, flutuando ao sabor da Lei da Oferta e da Procura. Mecanismos similares às bolsas de valores conferirão transparência e liquidez ao mercado, inclusive sinalizando quanto à demanda e ao correspondente valor futuro, incentivando investidores a ingressar no mercado.

 

Abrangência
Para que determinada contenção de emissão, ipsis litteris, ou o seqüestro e fixação do carbono por um tempo pré-determinado seja computado como crédito, diversas condições, previstas no PQ, necessitam ser atendidas. Além daquelas de natureza estrutural, como a exigência de os projetos serem baseados em florestamento, reflorestamento ou produção e uso de energias alternativas às fontes de carbono fóssil, existe a necessidade de comprovar os ganhos líquidos do projeto e o atendimento da meta pelo país que se propõe credor dos "créditos de carbono".
  A produção de biomassa, através de cultivos permanentes, é o principal foco dos projetos que objetivam o seqüestro de carbono. Não apenas o carbono é fixado nas árvores (podendo permanecer fixado mesmo quando as árvores são transformadas em móveis ou construções), como essa fixação é facilmente mensurável. Nos sistemas florestais, pode-se considerar também o carbono que passa a ser fixado, de forma estável, no solo, através de carbonatos ou de carbono orgânico.   Os combustíveis derivados de biomassa constituem projetos independentes do sistema de produção para obtenção da matéria prima. Isto vale tanto para o etanol, com tecnologia dominada e com perspectivas animadoras no mercado internacional, quanto para os combustíveis derivados de óleos vegetais (como o biodiesel), com um amplo leque de aplicações em serviços pesados (transportes, tratores, máquinas, motores estacionários), e que deverá se constituir em uma das principais fontes de combustível no futuro mediato.

Contexto atual
Corações e mentes encontram-se em compasso de espera, pois o Protocolo de Quioto apenas entrará em vigor caso 55 Partes (países ou grupos de países), representando, no mínimo, 55% das emissões de CO2 verificadas no ano de 1990, ratifiquem o PQ. Até o momento, o número de países que ratificaram o PQ ultrapassa a 55, porém atingindo apenas 47% das emissões de 1990. Isso ocorre porque dois grandes poluidores atmosféricos mundiais estão emperrando o prosseguimento da implementação: Os EUA, responsáveis por 36,1% das emissões, já decidiram que não ratificarão o protocolo, devido ao alto custo financeiro da contenção das emissões industriais, o que os tornaria menos competitivos no mercado global, sendo insensíveis ao custo que essa decisão impõe ao planeta; e a Rússia (17,4% das emissões) tem se mostrado reticente quanto à sua adesão, emitindo sinalização ambígua no tocante à sua decisão. Ocorre que as emissões desses dois países ultrapassa a 50% das emissões globais, o que lhes confere poder de veto à implementação do PQ.
  Como tal, o MDL se encontra no limbo, não estando em vigor os compromissos e metas negociados no PQ. Em decorrência, o mercado de créditos de carbono, que seria criado pelo MDL, também se encontra em regime de stand by. Embora alguns contratos tenham sido firmados e alguns projetos encontrem-se em implementação, esses são devidos à legislação ambiental própria de algum país, ou mesmo de estados dentro de países, como no caso dos EUA, ou então a mecanismos voluntários de mitigação das emissões de GEE.

O mercado hoje existente é incipiente e volátil, não se encontra lastreado em fundamentos sólidos, e não cumpre o papel de referencial de valores e indutor de investimentos. Em algumas situações existem investidores que buscam posicionar-se no mercado, para o caso de o Protocolo de Quioto ser implementado. Ou seja, estão comprando créditos de carbono baratos para revenda a preços maiores, quando houver exigibilidade de sua entrega física. Ou então, intermediários estão investindo em mecanismos de comercialização (como as bolsas) à guiza de conhecimento do mercado e de aprendizagem, uma vantagem comparativa em relação à quem chegar mais tarde no mercado.

Perspectivas futuras
Na eventualidade da entrada em vigor do PQ, o Brasil disporá da prerrogativa de ser um dos players mais ativos do MDL, atuando na ponta da oferta de créditos de carbono. Essa perspectiva decorre tanto das possibilidades oriundas de projetos de florestamento e reflorestamento, contemplados no MDL, quanto de produção e uso de biocombustíveis (derivados do álcool ou do óleo vegetal), assim como de outras fontes energéticas que substituam combustíveis fósseis.
  Em diversas situações a interface com o agronegócio é evidente e passa a constituir uma oportunidade que não pode ser desperdiçada. Por exemplo, o cultivo da seringueira para a extração de látex passa a ocupar um nicho importante, seja pelas oportunidades tradicionais, pelo incremento na demanda de borracha natural (a borracha sintética é derivada de petróleo) assim como pela oportunidade de ingressar no comércio de créditos de carbono.

Os projetos de MDL
A obtenção de créditos de carbono comercializáveis depende de uma série de etapas burocráticas que necessitam ser cumpridas antes, durante e depois da implementação do projeto propriamente dito. Essas etapas são necessárias para garantir a correção e a fidedignidade das informações e que as metas de redução das emissões sejam atingidas. Face a esses quesitos burocráticos haverá necessidade de constituir organizações dedicadas à elaboração, tramitação e validação dos projetos.

O PQ prevê a existência de um Comitê Executivo de MDL, que será responsável pelo cumprimento dos dispositivos que embasam o mercado de créditos de carbono. Cada governo deverá constituir um Comitê próprio o qual, em última análise, é o braço do PQ de cada uma das partes ratificantes.

 

Os projetos elegíveis para o MDL devem promover seqüestros de carbono ou reduções de GEE, que não sejam decorrentes de compensações entre áreas, e que sejam mensuráveis e permanentes. A duração de um projeto de MDL pode atingir até 21 anos.

Um ponto importante é a adicionalidade das reduções, ou seja, as emissões de GEE devem ser menores na presença que na ausência do projeto, o que exige o estabelecimento de uma linha base, que servirá de referência para os cálculos de emissões. Para que o projeto de MDL seja aceito para transação é necessária a sua validação, com base nos pressupostos anteriores, prevendo ainda o monitoramento das metas estabelecidas, ao longo do tempo de duração do projeto.

É importante considerar que, na formulação de um novo projeto, tanto na área de florestamento/reflorestamento, quanto em relação à obtenção e uso de energia limpa, os recursos que podem ser obtidos através da comercialização de créditos de carbono derivados do projeto passam a constituir uma importante vantagem competitiva, podendo alavancar determinados negócios que dependiam de sustentabilidade mercadológica e consistência financeira.

Competitividade e subsídio

Décio Luiz Gazzoni

O Brasil, quem diria, preocupa os formuladores das estratégias de comércio internacional dos EUA. De acordo com o Departamento de Agricultura (USDA), o desempenho recente e o potencial da agricultura brasileira ameaçam a hegemonia americana no setor.

Soja
Há dois anos que o USDA analisa a evolução da agricultura brasileira. Na oportunidade, participamos de um workshop, com uma semana de duração, em que a agricultura brasileira foi dissecada. O estudo agora vem à tona e reafirma a competitividade da agricultura do Brasil. Projetado para os próximos dez anos, o crescimento das exportações brasileiras ocuparia espaços incrementais do mercado e reduziria a participação dos EUA. Nossas exportações de soja aumentaram 100% nos últimos dez anos e, no cenário pessimista, projeta-se um crescimento médio de 4% ao ano, até 2010, o que significa crescer, no mínimo, 50% no período. Esse índice é 300% superior ao previsto para o crescimento do mercado como um todo, quatro vezes mais que a média mundial. Outros componentes da cadeia, como o óleo de soja, devem ter um crescimento ainda maior, estimando-se que possa alcançar 100% no período.
  Milho
A produção brasileira cresceu 40% durante os anos 90. De crônico produtor marginal e importador, o Brasil abre o III Milênio exportando quase 4 milhões de toneladas. Um valor ainda incipiente, porém a inovação está na mudança de posição no comércio internacional. O clima colaborou e a safrinha 2003 foi das melhores que se tem notícia. Independentemente das flutuações anuais, devidas a pressões de estoque, preços ou clima, o importante é a tendência de longo prazo, onde é posta como certa a presença do Brasil como exportador, no mercado internacional de milho.

Outros produtos
A expansão da fronteira agrícola rumo ao Centro Oeste e ao Nordeste está permitindo o soerguimento de outros cultivos, como o algodão e o arroz. Conforme o USDA, o motivo para a expansão da produção no Brasil nos próximos anos é a oferta de terras que ainda podem ser cultivadas, especialmente no Centro-Oeste. Além desse estoque, há que se considerar a possibilidade de incorporar à agricultura imensas áreas de pastagem nativa, que ganham produtividade com a melhoria da pastagem e do manejo do gado, o que tem aumentado também a competitividade da pecuária. Em outros setores, como a fruticultura, o Brasil tem feito um esforço enorme para adequar-se ao mercado internacional, ao longo da última década, tendo chegado o momento de colheita dos frutos desse investimento.
  Subsídios
Buscando qualquer justificativa para manter seus subsídios, os americanos afirmam que o aumento de produção no Brasil ocorrerá à conta das exportações norte-americanas. Afirmam, também, que os preços dos produtos e a renda dos produtores americanos diminuirá, razão pela qual pleiteiam o aumento dos subsídios aos seus agricultores. De acordo com o USDA, o aumento de produção de soja no Brasil explica a queda nos preços internacionais nos últimos três anos, o que tem afetado a renda dos produtores norte-americanos. O que contraria o senso comum e os livros textos de economia. Na avaliação do Ministro Roberto Rodrigues, a lógica é exatamente a oposta: são os subsídios norte-americanos que provocam uma queda nos preços internacionais, impossibilitando que os agricultores brasileiros, muito mais competitivos, exportem um volume ainda maior de soja.

Questionamento

O Itamaraty argumenta que, na última década, o subsídio americano aos seus produtores aumentou de US$ 109 milhões para US$ 3,8 bilhões, razão pela qual acena com a possibilidade de questionar a sua legalidade. Além da deterioração dos preços mundiais, os subsídios ainda mantém a soja norte-americana no mercado, criando obstáculos à exportação do Brasil em outros mercados, como no Oriente Médio.   O que estamos assistindo é um embate preliminar, prefácio da mudança de posições. Os EUA não tem mais como ampliar sua área de produção e a sua competitividade natural esvaiu-se em uma agricultura viciada em subsídios. Por mais dolorida que seja a terapêutica, a única solução definitiva é a retirada total dos subsídios, como fez a Nova Zelândia, que aumentou sua participação no comércio internacional após o fim de seu protecionismo.

Multifuncionalidade da Agricultura

B o x e s

Aspectos Conceituais

Multifuncionalidade e Protecionismo

 

A agricultura, na transição de milênios, também se encontra em transição. Sai do palco o processo exclusivo de produção (agrícola ou pecuária) e abre-se o cenário para um complexo de novas atividades que ocupam o espaço rural. Aliás, o próprio conceito de espaço rural torna-se fluído, não podendo ficar restrito às placas de rodovia que indicam o início do "perímetro urbano". A periferia das cidades passam a ser ocupadas por sistemas mistos como chácaras de lazer, clubes de campo, pesque-e-pague, parques de exposições, recintos de rodeios, etc. Por outro lado, o espaço rural é invadido por atividades anteriormente urbanas, como indústrias, processadores, depósitos, entre outras.   Para melhor entendimento, analisemos o exemplo da Serra Gaúcha, que virou sinônimo de qualidade de vida. Não é uma avaliação empírica, porém uma constatação amparada nos indicadores internacionais de qualidade de vida, adotados pela ONU. No início de 2002, a cidade de Feliz, no sopé da Serra, foi decantada em prosa e verso como a cidade com melhor qualidade de vida do Brasil. O que leva um "povoado" como Feliz a conquistar este galardão? De onde vem sua força? Da multifuncionalidade da agricultura, base do emprego, renda e desenvolvimento da comunidade. As cadeias produtivas que movimentam a cidade têm, em comum, a agropecuária como componente mais importante.

Exemplo
A Serra Gaúcha é um dos exemplos mais acabados do conceito e do sucesso de uma agricultura multifuncional. Mas, foi sempre assim? Não, e quero dar o testemunho de quem nasceu e cresceu em Bento Gonçalves, cidade encravada na Encosta Superior do Nordeste - nome oficial da Serra Gaúcha. A colonização da região pelos imigrantes europeus, em especial italianos e alemães, ocorreu na segunda metade do século XIX. Lembro das tertúlias em que meus avós teatralizavam as peripécias dos migrantes recém-chegados da Itália, abandonando seu país por absoluta falta de perspectivas.
 

Aqui aportavam sem conhecer a língua, com a roupa do corpo e mais duas mudas na mala, "dopo trenta e sei giorni di machina a vapore". Abundavam apenas qualidades como esperança, persistência, coragem e visão de negócio. Auxiliava-os a tradição de muitas gerações sofridas, a cultura milenar da Europa e o espírito empreendedor.

Em chegando, os migrantes recebiam algumas léguas de terra precariamente demarcadas, invariavelmente uma encosta de morro, onde algum solo poderia ser vislumbrado entre o pedregulho. Solidariedade e apoio mútuo substituíam ferramentas, sementes e fertilizantes. Agrotóxicos sequer existiam.

  Minhas lembranças remontam aos anos 50, quando ainda persistia a pobreza. Uma pobreza digna e democrática. Fortunas eram raras, contavam-se-nas nos dedos. As famílias mais abastadas eram admiradas pelo suor desprendido e por sua capacidade empresarial e de gestão. Fome zero, assim como miséria ou analfabetismo zero! Todos os habitantes tinham uma fonte de renda, o que comer e uma casa para morar. A força vinha do que hoje se emoldura como agricultura multifuncional, o pano de fundo do Novo Rural, a visão brasileira da agricultura multifuncional.

 

Agregação de valor
Pelo agricultor da Serra Gaúcha nunca passou a idéia de perpetuar a pobreza, sempre houve uma confiança cega em dias melhores, no progresso continuado. O segredo está no entendimento da diversificação de atividades (diversificando riscos, ameaças e oportunidades), no associativismo e no engajamento comunitário, na agregação de valor. Historicamente, o agricultor típico da Serra Gaúcha não vende trigo ou milho, ele leva ao consumidor pães, bolos, tortas, brioches, bolachas e biscoitos, devidamente recheados e embalados, etiquetados e diferenciados. Pode até vender a uva (selecionada, embalada e etiquetada), mas seu negócio é vender o vinho, a grappa, o brandy ou o vinagre, distanciando-se da álea mercadológica.
  No rastro do agricultor multifuncional surgiram cidades pujantes como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Gramado e outras, onde é muito difícil separar o rural do urbano, se forem usados conceitos rígidos, que até podem ser válidos para outras regiões. A mesa variada, barata e farta é hoje um dos símbolos da região, tornando a culinária um atrativo negocial da urbe, porém com forte lastro do rural. A própria diversificação econômica e a pujança das cidades somente pode ser concretizada a partir do acúmulo de capital, da experiência em gestão empresarial e do traquejo no domínio de processos, que formam a base de uma agropecuária com matizes multifuncionais.

Escala
É importante destacar que sempre haverá uma agricultura empresarialmente forte, pautada em comodities, cujo diferencial será a economia de escala. Essa agricultura, que possui pequena margem por unidade de área produtiva, é intensiva em capital e tecnologia e escassa em trabalho. Sua viabilidade decorre da larga escala, porém o seu conceito não embute a proliferação dos empregos na mesma magnitude da multiplicação da receita. A agricultura francamente comercial sempre terá novas oportunidades, como a que surge no horizonte do terceiro milênio, focada no dueto bioenergia - alimentos, centrada em produtos com alto teor de carboidratos, oleaginosas e no reflorestamento. Porém, essa mesma oportunidade estará posta para a pequena propriedade, seja na geração de energia para auto-abastecimento ou para o atendimento da demanda comunitária.
  Entretanto, é no pequeno espaço, na agricultura familiar e na pequena propriedade que a agricultura multifuncional resplandece com seu arco de oportunidades econômicas e comerciais, com profundo senso social e de convivência com os preceitos de preservação ambiental. Enquanto a agricultura francamente empresarial permite a exploração pecuária, de bois ou búfalos, em larga escala, a pequena propriedade pode beneficiar-se de criações exóticas, com forte apelo de consumo, que se traduz em produtos de maior valor intrínseco no processo de comercialização.

Neste particular, a avestruz se constitui no paradigma, por ser exótica, de introdução recente e de rápida expansão, gerando muito interesse no meio rural. Além da carne apreciada, o que permite colocá-la no mercado a preços altamente remuneradores, da avestruz o criador pode aproveitar tanto as penas quanto o couro, expandindo o leque de negócios. Seu parente próximo, a ema, pode ser outro exemplo negocial, o mesmo se aplicando a jacarés, rãs, alcançando camarões ou pequenos animais, como coelhos ou perdizes.   A agricultura multifuncional depende da criatividade em vislumbrar oportunidades de negócios. Um exemplo didático está na associação lazer e negócios. Mesmo enfrentando em seu início o preconceito de beócios que se imaginam pescadores - aquele que garganteia seus feitos, mas que, lá no fundo não é de nada, e que estufa o peito para vangloriar-se que não pesca em poça d’água. Infenso aos que não queriam expor a sua falta de habilidade e pendor para a pesca aos outros adeptos do hobby, os micro-empresários rurais investiram nos néo-pescadores, potencialidades latentes que borbotam aos milhões no meio urbano, e que acabaram sendo atraídos pela febre dos pesque-e-pague, que vicejam na periferia das cidades e no meio rural.

Atividade típica de quem dispõe de pouco espaço para abrigar um empreendimento sustentável, o pesque-e-pague alimenta toda uma cadeia de interesses negociais, desde os materiais e insumos para pesca, os alevinos, a ração até o processamento do peixe. Além do lazer da fisga, a atividade engloba bar, restaurante, parque infantil, áreas para prática de esportes e outras atividades de interesse de seu público. Os mais arrojados agregaram festas temáticas ou música ao vivo, do tipo "um banquinho e um violão". Embora em menor escala, porém dentro dos mesmos propósitos, surgem as fazendas de caça, que criam animais para atrair caçadores provenientes do meio urbano, uma expansão do antigo conceito dos clubes de caça e pesca.   Na fricção da produção animal vem os haras. Até aí nada de novo, há séculos a criação de cavalos é um bom negócio. Mas, que tal pensar em escola de equitação? Não para jóqueis profissionais, mas para o mero lazer? Ou aluguel de baias e pasto para a égua de estimação da caçula de uma família urbana? Ou, a nova onda, a equinoterapia, a recente descoberta de como o cavalgar e o próprio contato com os cavalos é surpreendentemente útil em terapias de enfermidades físicas ou mentais?

Qualidade e sofisticação
Enquanto isso, na área vegetal, o agricultor multifuncional que se preza não entrega alface e repolho para o atravessador. Se ainda não o é, almeja ser um produtor orgânico. No pós-colheita, efetua um pré-processamento, seleção e limpeza de tomates, pepinos e rabanetes. No extremo, as verduras e legumes são picados e embalados, prontas para temperar e consumir. Aqui a criatividade captou a oportunidade do consumidor que não tem tempo para preparar uma refeição elaborada, ou que pretende investir o seu tempo em outras atividades.
  O espaço se abre para um leque de produtos naturais e macrobióticos, essências e temperos. Cogumelos são um "must" e sempre encontram consumidores. O sistema de produção, o processamento e a embalagem multiplicam a receita do produtor. As frutas atendem as exigências de qualidade do mercado, as flores e outras plantas ornamentais, os temperos, aromáticos, fitoterápicos e outras potencialidades da nossa biodiversidade brotam da cornucópia do empresário do novo rural brasileiro. Mesmo que esse empresário se valha apenas do tempo parcial da mulher e três filhos, além de escassos empregados fixos.

Criatividade
Essa mesma família diversifica as atividades, produzindo bebidas como sucos, néctares ou destilados alcoólicos e licores ou macerados de ervas, inclusive aproveitando as propriedades terapêuticas da nossa flora. Das frutas saem as compotas, as geléias, as passas e outras delícias. De outros produtos vegetais brotam as conservas, o tomate seco e outras opções de consumo apreciadas e particularmente valorizadas pela sua característica artesanal. Do leite produz-se o queijo, a coalhada, o iogurte, a ricota, a manteiga e outros derivados lácteos. Das carnes extrai-se charque, salame, copa, mortadela e outros embutidos. A marca da agroindustrialização passa pela agregação de valor, condição essencial para conferir sustentabilidade na ausência de escala da propriedade.
  Festa, que ninguém é de ferro! Sim, festa e outras opções de lazer não deixam de ser boas oportunidades de negócio no meio rural. Aqui, mais que nos outros segmentos, vale a criatividade. Vale quadrilha de São João em plena fazenda, complexos hípicos bem organizados, festa de rodeio, leilões, exposições agropecuárias, shows folclóricos, bailões e bailinhos. Vale a chácara para o churrasco de final de semana, para o futebol, a festa de aniversário do caçula ou de casamento do primogênito.

O lazer rural, ao contrário do que possa ser imaginado, vive do público urbano, seu maior freqüentador. O movimento financeiro estimado dessas atividades ultrapassa a R$ 20 bilhões, um agregado que rivaliza – quem diria! com a produção brasileira de soja.

Qualidade de vida
Na mesma linha do lazer, começam a ganhar espaço os hotéis fazendas e as fazendas hotéis, iceberg de um conjunto de atividades que formam a opção do turismo rural. Espaços sofisticados ou espaços com a rusticidade e a simplicidade da roça. Acordar às 4 h da matina para tentar, desajeitadamente, ordenhar a teta da vaca. Caminhar pelos campos, para aguçar os sentidos. Sentir o cheiro de bosta, observar o serpenteio do riacho, ouvir o arrulho de ximangos, guarubas, acauãs, açores, alcíones, urutaus, alvéloas e taralhões, aves virtuais para reclusos em apartamentos, acostumados a pombinhas, pardais e andorinhas ou aos abutres do lixão.
  O espaço rural se presta tanto a prosaicas diversões infantis, cercada de cuidados e segurança, até as trilhas e o acampamento no mato, para trazer à tona a porção selvagem de cada um de nós ou, no extremo, a prática de esportes radicais, como o rapel, a escalada, a canoagem ou os vôos de asa delta.

Negócio familiar
Entra a noite, mas os negócios continuam. É hora de saborear a legítima comida do caipira mineiro ou o carreteiro do peão gaúcho. Entrar a noite em tertúlias, ao som de violas caipiras ou acordeonas. Pilotando o fogão ou o instrumento musical, sempre um membro da família, pilastra da sustentabilidade dos pequenos empreendimentos rurais.
  Impossível esgotar, neste espaço, todas as facetas dessa revolução fascinante da introversão do Brasil em sua vocação maior, da busca de oportunidades na área rural, quando elas escasseiam no meio urbano. Até porque a revolução está em seu início, longe de esgotar-se. A dinâmica do novo rural brasileiro possui o condão de resgatar a dignidade de milhões de famílias do interior do Brasil, permitindo reacender a chama da esperança em dias melhores, invertendo o sinal dos atrativos que induzem as migrações internas. O Brasil urbano, mais do que admirar, precisa mirar-se no exemplo pujante do novo Brasil rural.

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Aspectos conceituais

Caracteriza-se a multifuncionalidade quando a agricultura rompe o viés da unilateralidade da produção de alimentos para atuar na proteção do meio ambiente e da paisagem, como geradora de empregos, protetora do território, dos recursos naturais e da cultura local, além de outras atividades como o lazer. Dessa forma, o cidadão urbano também é beneficiado, indiretamente, pois com a contenção do êxodo rural evita-se o inchamento das cidades, a demanda por recursos (habitação, saneamento, saúde, educação, transporte, etc) e a disputa por empregos urbanos.

Na Agenda 21, um dos documentos produzidos durante a ECO-92, ressalta-se o "aspecto multifuncional da agricultura, particularmente com respeito à segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável". Posteriormente, na reunião do comitê dos Ministros da Agricultura dos países membros da OECD, realizada em 1998, estabeleceu-se que "além de sua função primária de produção de fibras e alimentos, a atividade agrícola pode também moldar a paisagem, prover benefícios ambientais tais como conservação dos solos, gestão sustentável dos recursos naturais renováveis e preservação da biodiversidade e contribuir para a viabilidade sócioeconômica em várias áreas rurais. Assim, a agricultura é multifuncional quando tem uma ou várias funções adicionadas ao seu papel primário de produção de fibras e alimentos".  

A característica da multifuncionalidade é um atributo associado à pequena propriedade e à agricultura familiar. Nesse segmento não é possível concentrar-se em produtos agrícolas de baixa rentabilidade por unidade de área e a busca da sustentabilidade deve concentrar-se em outras oportunidades, como o investimento em produtos de alto valor intrínseco, na agregação de valor, na diversificação de atividades e na maximização do retorno do trabalho e de tecnologias adequadas. Para tanto um conjunto de desafios necessita ser superado, tanto em termos de políticas públicas, quanto em desenvolvimento e transferência de tecnologias de processos e de gestão empresarial.

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Multifuncionalidade e Protecionismo

Escorados em uma sofisticada elaboração conceitual, que reflete a realidade de campo, os defensores do protecionismo da agricultura européia entenderam como altamente justo que, além do preço do alimento (pago pelo consumidor), competiria ao cidadão (contribuinte) pagar pelos demais serviços da agricultura, por seus benefícios serem difusos no seio da sociedade, buscando intelectualizar a discussão sobre protecionismo agrícola.

É muito importante evitar a associação exclusiva entre a realidade de uma agricultura de múltiplas funções com o uso político que a União Européia vem fazendo da agricultura multifuncional. O Velho Continente foi o espaço geográfico onde o fenômeno da multifuncionalidade agrícola primeiro se manifestou e onde se consolidou. No embate entre manter ou desativar subsídios agrícolas, o conceito de multifuncionalidade caiu como uma luva para tonificar os corroídos argumentos dos lobies protecionistas.  

 

Na Reunião Ministerial da OMC, realizada em Cancun, o argumento foi esgrimido à farta, embora já houvesse sido introduzido na reunião de Seattle e reverberado na Rodada do Milênio (Doha, Qatar). Com abuso do contorcionismo verbal e escrito, os negociadores europeus ressaltam que esses atributos da agricultura constituem externalidades positivas e bens públicos, produzidos conjuntamente com alimentos e fibra, derivando-se o argumento de que a agricultura faria jus a um pagamento pelo serviço prestado à sociedade, ou seja, deve ser subsidiada. Para tanto foi efetuada uma releitura da mais antiga das atividades econômicas, que passou a ser conceituada como "Um ato de produção, mas também de ocupação de território, de preservação do meio ambiente, de melhoramento da qualidade dos produtos e de criação de empregos".

 
Sem querer justificar a posição européia, é difícil admitir que os camponeses, pequenos agricultores, com sua estrutura de produção centrada na mão de obra familiar, venham a ser banidos do cenário econômico europeu. Quanto mais não seja, o camponês faz parte da História, não apenas da Europa, mas da Humanidade e trata-se de algo a ser preservado, como são preservadas as catedrais góticas ou a arte de Van Gogh. Entretanto, isto não pode ser argumento para esbulhar detentores de competitividade natural, como os agricultores de países periféricos, de clara vocação agrícola.   O recurso ao argumento da segurança alimentar esboroou-se conforme a liberalização do comércio garantiu acesso a estoques, em qualquer parte do mundo, existindo alimentos disponíveis para quem dispuser de recursos para adquiri-los. Assim, a posição da EU gerou reações bem claras de países prejudicados, salientando-se os EUA, o Grupo de Cairns, o Grupo dos 20 (ou dos XX, posto que o número de participantes tem se modificado). Países que dependem em grande parte de seu agronegócio, como o Brasil e a Argentina, estão entre os principais opositores da tese. O recurso à multifuncionalidade tem sido rotulado como pretexto para perenizar o protecionismo a uma agricultura que não é competitiva, posta as regras atuais.

Do embate de posições espera-se que seja encontrada a solução mágica que resolva uma aparente inequação: como preservar a agricultura multifuncional e o agricultor familiar da Europa, sem que a conta tenha que ser paga pelos pequenos agricultores dos países de vocação agrícola.

Certificação e rastreabilidade

Décio Luiz Gazzoni

B o x e s

SISBOV e CFO Rumo ao Futuro Certificação na Agricultura Orgânica

Em 1995 assumiu a Secretaria Nacional de Defesa Agropecuária do MAPA o Dr. Ênio Marques, atual Diretor da ABIEC (Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carne). Havíamos trabalhado conjuntamente em um projeto internacional e continuamos a parceria na SDA. Foi nesta oportunidade que o Dr. Ênio introduziu a discussão sobre a adaptação do agronegócio brasileiro às novas regras sanitárias e de qualidade que permeavam o acordo da OMC. Entre elas despontavam os conceitos de certificação de produtos e seu corolário, a rastreabilidade.

 

Passados oito anos, os programas setoriais saem das pranchetas e se tornam realidade, como fórmula de agregar valor, abrir novos mercados e consolidar mercados exigentes. Tanto os fiascos sanitários da Europa e do Canadá quanto as ameaças terroristas deram impulso definitivo à necessidade de definição de regras rígidas para garantia de qualidade e inocuidade de alimentos, matriz do processo de certificação e de seu derivado, a rastreabilidade.   Conceitua-se como certificação o conjunto de procedimentos que permite aferir que determinado produto atende as especificações estabelecidas. Estas especificações tanto podem ser emitidas por um órgão oficial, mormente quando se trata de atributos que possam impactar, negativamente, a saúde pública ou o meio ambiente. Ou que podem ser elaborados por compradores ou importadores, que impõem requisitos de qualidade e de padronização.   A certificação é efetuada por uma entidade habilitada, de reconhecida competência, imparcial e independente, credenciada de acordo com as normas do país. Para desempenhar a atividade é necessário obedecer a procedimentos internacionalmente aceitos e ater-se à normatização dos órgãos nacionais que deliberam sobre o tema.

JDisponibilidade de informações
á a rastreabilidade é a característica de um produto que dispõe de registro de todas as etapas tecnológicas, os serviços e os insumos utilizados na sua produção. No caso de animais, registra-se desde a genealogia, passando por datas importantes, a partir do nascimento, as vacinações, os medicamentos, as transferências, o manejo e os principais fatos nutricionais. Em relação aos produtos vegetais registra-se a procedência da semente ou muda, os insumos utilizados, as técnicas e procedimentos de manejo da cultura, além da colheita e do processamento. Em ambos os casos, sempre haverá um profissional, devidamente habilitado, responsável pelas operações rastreadas.
  A lógica da associação entre certificação e rastreabilidade é a possibilidade de detecção de falhas metodológicas caso uma não conformidade às regras seja identificada em algum ponto da cadeia, em especial nas etapas de distribuição e consumo. Ocorre que a certificação é efetuada por exame documental e auditada por amostragem, havendo uma probabilidade, embora pequena de eventuais problemas não serem passíveis de detecção nesta etapa. Por exemplo, determinado agrotóxico pode haver sido aplicado em doses superiores às recomendadas (por erro de cálculo, sobrepasse de área tratada, má lavagem do pulverizador), o que viria a redundar em resíduos acima do permitido no produto final. De posse do registro de todas as tecnologias e insumos, é possível recompor o processo produtivo e verificar o ponto onde ocorreu o desvio, corrigindo a anomalia.

Agricultura e Pecuária
Existem diferenças abissais entre os diversos produtos agropecuários, relativamente aos processos de certificação e de rastreabilidade. Como regra geral, é mais fácil e simples certificar produtos animais que produtos vegetais. Em especial, a certificação de grandes animais, é de implementação mais simples, pela possibilidade de identificação individual e de acompanhamento de rebanhos, durante todo o processo de produção. Após o abate e o ingresso na cadeia de processamento, distribuição e consumo, a automatização de processos e etapas facilita, enormemente, tanto a certificação quanto a rastreabilidade.
  No caso de pequenos animais, produzidos em grande escala, o acompanhamento não pode ser efetuado para cada indivíduo, devendo o plantel ser certificado e rastreado. Entretanto, com a padronização de tecnologias e insumos, utilizados de maneira uniforme para o conjunto que está sendo certificado, a sua operação não apresenta maiores entraves, tanto na fase de granja quanto nas etapas posteriores.

Dificuldades
Na área vegetal existem diferenças mais marcantes. Produtos de alto valor intrínseco, como frutas e hortaliças, apresentam maior operacionalidade para certificação que os demais produtos, o mesmo ocorrendo em relação à produtos da agricultura orgânica. A maior dificuldade é encontrada para comodities agrícolas, de baixo valor de comercialização, e produzida em grande escala.
  Essa dificuldade não é um atributo brasileiro, ela permeia todos os grandes produtores agrícolas. O primeiro problema enfrentado é o custo do processo de certificação e rastreabilidade. Embora os custos sejam similares entre cultivos, o peso no custo de produção varia em função do valor de mercado do produto. Como exemplo, US$5,00/ton de soja representa 2-3% do valor do produto. No caso de uva ou aspargo, o índice cai para perto de 0,5% do valor.   O segundo problema ligado ao custo é a sua absorção. Em qualquer cadeia produtiva de matriz insumo-produto, sempre existe uma fricção entre os seus elos, de forma que a etapa anterior tenta obter o maior preço de venda e a posterior o menor custo de aquisição. Sendo uma inovação recente, ainda é muito confusa a percepção de custo/benefício da certificação entre os elos da cadeia. As perguntas que se impõem são: quem se beneficia do bônus da agregação de valor e quem arca com o ônus do custo da certificação?

O custo do pioneirismo
O segundo problema é a segregação de produtos em função de atributos certificáveis. Produtos da agricultura orgânica não podem ser imiscuídos, ao longo da cadeia, com aqueles derivados da agricultura convencional. Para alguns consumidores, deve haver segregação e rotulagem de OGMs, diferenciando-os de seus similares convencionais. Na origem, ou seja, na fazenda, este processo é simples. Entretanto, ao ingressar na cadeia de transporte e armazenagem e, em especial, nas operações portuárias, há uma grande dificuldade operacional, traduzida em custos, pela necessidade de linhas diferenciadas, duplicação de equipamentos, perda de escala, acréscimo de mão de obra, etc.
  Estas questões são típicas da fase de introdução de inovações nas cadeias produtivas, possuindo o condão de sacudir os alicerces de procedimentos históricos e consolidados. Entretanto, há que se ter em mente que a exigência de qualidade e inocuidade – conseqüentemente de certificação – foi imposta pelos consumidores e passou a ser um requerimento para participação nos mercados mais ricos e exigentes.

É vital dispor de clarividência para hierarquizar o que é, efetivamente, importante ser segregado, a prioridade de atuação e o cronograma de implantação. Logo, impõe-se que os diferentes segmentos das cadeias e as autoridades governamentais encontrem, rapidamente, solução para os entraves aos processos de certificação, segregação e rastreabilidade, pois, no paradigma do mercado globalizado, eles se constituem em um diferencial que garante a competitividade setorial.

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SISBOV e CFO

A implantação do processo de rastreabilidade bovina no Brasil (SISBOV) decorre de uma exigência da União Européia. A legislação que regulamenta o SISBOV é a seguinte:

1. Instrução Normativa nº 01 (10/01/202), que institui o Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina – SISBOV;

2. Instrução Normativa nº 21 (26/02/2002), que estabelece as diretrizes, os requisitos, os critérios e os parâmetros para o credenciamento de entidades certificadoras junto ao Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina – SISBOV;

3. Instrução Normativa nº 47 (31/07/202), que aprova as instruções complementares para regulamentação, implementação, promoção e supervisão da execução do controle operacional de entidades certificadoras credenciadas no âmbito do Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina – SISBOV;

4. Instrução Normativa/SDA nº 47 (1/06/23), que aprova o manual de auditoria do Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina – SISBOV

O sistema não define a metodologia de identificação do animal, que resultará de uma negociação entre a instituição certificadora e o produtor. Pode ser utilizada a vetusta marca a ferro, feita em local adequado, os brincos plásticos e brincos com código de barras, até os de leitura da íris do animal por meio de uma câmera e o chip eletrônico. Está sendo desenvolvida a metodologia de identificação pelo DNA, que poderá ser a técnica definitiva, no futuro.

Ordenamento
A legislação estabelece normas rígidas para a movimentação de animais. Cada animal disporá de um documento de identificação que será fornecido pela empresa certificadora. Para toda a movimentação de animal (venda intermediária ou venda para abate) deve ser emitida uma GTA – Guia de Transporte de Animal que será fiscalizada juntamente com o documento de identificação. Em caso de venda a frigorífico, existe a obrigação legal de entrega dessa identificação para o MAPA.
  O MAPA será responsável pelo sistema de rastreamento animal, gerenciando a implantação e a manutenção do banco de dados. As operações de certificação serão efetuadas por empresas que serão credenciadas pelo MAPA, as quais serão responsáveis pela conferência e auditagem das informações, processos, insumos e tecnologias utilizadas e que necessitam ser rastreadas.   Já na área vegetal, a primeira normatização, visando apoiar os processos de certificação e rastreabilidade, data de 1998 (IN SDA 246, de 30/12/98), instituindo a Certificação Fitossanitária de Origem (CFO). Posteriormente, a IN SDA 6 (13/3/2000), alterou alguns procedimentos operacionais do CFO e criou o Certificado Fitossanitário de Origem Consolidado (CFOC).

Habilitação
O CFO é emitido por profissional habilitado (Engenheiro Agrônomo ou Engenheiro Florestal), credenciado pelo MAPA, para atestar a qualidade fitossanitária na origem das cargas de produtos vegetais. Os Certificados serão necessários para o trânsito de produtos potenciais veiculadores de pragas quarentenárias A2 e das não quarentenárias regulamentadas, bem como no atendimento de exigências especificas de certificação, seja do mercado interno ou do externo.
  O CFO subsidiar, conforme o caso, a emissão das Permissões de Trânsito ou Certificados Fitossanitários, quando forem exigidos esses documentos para o trânsito interestadual ou internacional, ou se houver exigências especificas de certificação fitossanitária na produção.

Para os efeitos do CFO, a origem pode ser a propriedade rural, bem como uma unidade centralizadora ou processadora de produtos vegetais, a partir da qual saem cargas destinadas a outras unidades da federação ou a pontos de saída para o mercado internacional. As mesmas regras se aplicam ao material de propagação (sementes, mudas, estolões, borbulhas, etc).   O CFOC será emitido apenas em unidades centralizadoras, devendo constituir lotes dos produtos recebidos, certificando-se que estes tenham vindo acompanhados de seus respectivos CFO, ou Permissões de Trânsito, quando oriundos de outras unidades da federação. Os lotes serão compostos com produtos de mesma espécie e que tenham preferencialmente características fitossanitárias semelhantes e mesma origem.   A IN 6 determina que as informações sobre rechaço de produto para o qual foi emitido CFO ou CFOC deverão ser comunicadas ao órgão responsável pela emissão da Permissão de Trânsito da unidade da federação correspondente a origem do produto para apuração, o qual devera informar imediatamente o fato à representação do Ministério da Agricultura e do Abastecimento mais próxima para, orientar sobre as medidas corretivas a serem adotadas.

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Rumo ao futuro

A palavra rastreabilidade não é encontrada no "Aurélio" ou no "Houaiss", como deles não constam tantas outras, recentemente incorporadas ao nosso linguajar. A evolução cultural e tecnológica assumiu um ritmo e um cunho globalizante que os usos, costumes e a comunicação coloquial acompanham mas os dicionários não. No começo, falava-se em "trace back", por falta de correspondente em português, de onde decorreu o neologismo "traçabilidade", como se usava "agribusiness" até ser plasmado o termo agronegócio. Rastreabilidade é a catalogação de cada processo ou insumo da cadeia produtiva, permitindo identificar eventuais não conformidades, detectadas no uso final do produto ou em qualquer ponto da cadeia produtiva. Mas o importante mesmo é saber que, sem rastreabilidade, o espaço mercadológico de um produto agrícola fica mais estreito.

 

Ficção?
Imagine a cena: no balcão de carnes do supermercado você anota o código de uma picanha, vai até o terminal de computador, e lê o "diário" ou o "blog" do boi na Internet, para decidir sobre a compra. Fantasia? Não, a Embrapa está transmutando essa ficção em realidade. Antigamente, com a boiada no brete, um peão vacinava e cantava o número do animal. Outro peão, papelório na mão, procurava a ficha e anotava, rapidamente, porque o vacinador já cantava outro número. Na saída do brete, um terceiro peão separava os animais por lotes. Na confusão, e no stress da pressão para manter o ritmo, ocorriam os erros.
  Agora, uma tecnologia desenvolvida pela Embrapa vai, praticamente, eliminar os erros e facilitar os controles de pesagem, vacinação, banhos e outros procedimentos sanitários, nutricionais e de manejo do gado. O segredo está no implante de um chip no bezerro, que o acompanhará até o abate no frigorífico, onde será resgatado. Essas informações estarão disponíveis para todos os usos técnicos e mercadológicos compulsórios ou imagináveis – até o "diário" do boi na Internet!   Na prática, o que vai ao campo não é o computador mas uma interface, que está sendo alcunhada de "teclado do peão". O teclado dispõe de uma memória, para registro dos dados, e de um sistema para comunicar-se com o chip, através de um sensor. Assim, são armazenados no chip, implantado no animal, as informações sobre sua nutrição, saúde e reprodução. Esse banco de dados fornece parâmetros técnicos ou econômicos para melhorar o manejo do gado ou a gestão da propriedade. O nome teclado do peão vem de sua portabilidade e da facilidade de uso, projetado que foi para resistir às duras condições da lide em campo aberto.

Eletrônica rural
O chip dispõe de uma bateria que lhe permite permanecer ativo durante o período de registros, até o abate do animal. O teclado possui um sensor que identifica automaticamente o animal. Mesmo que o animal não tenha o chip, é possível registrar os números (brincos) através do teclado, muito mais simples que procurar registros pela papelada. Terminada a faina de campo, o teclado é levado ao escritório da fazenda, onde cópia dos dados enviados a cada chip é transferida para o computador. Um software lê e armazena os dados, os quais podem ser utilizados para qualquer finalidade técnica ou administrativa.
  Embora o acesso à Internet ainda seja uma utopia em nossos campos, a chegada de celulares com acesso direto a satélites e a conexão aberta 24h com a Internet já está no pipeline, o que abre infinitas possibilidades. A fazenda Pecuária Seletiva Beka, (Santo Antônio da Platina - PR), foi a primeira propriedade particular a ter os animais de rebanho monitorados com o chip da Embrapa.

A Embrapa está negociando uma parceria com uma empresa norte-americana para transferência onerosa da tecnologia brasileira para uso nos EUA. O Governo do Uruguai também está interessado em levar essa tecnologia para as plagas do sul, a fim de monitorar seu rebanho de 2,8 milhões de cabeças. O sistema da Embrapa tem um custo de implantação estimado em R$5.000,00. O preço de cada chip oscila entre R$6,00 e R$9,00, dependendo da quantidade adquirida.   Com o chip, o couro não é prejudicado pelas marcas de ferro quente e a tecnologia em si evita fraudes. Para extrair o chip, será necessário abrir o estômago do bovino adulto. Nos bezerros, cujo transponder é inserido na prega umbilical, qualquer forma de fraude causaria uma cicatriz, o que evidenciaria o possível delito. Os interessados na tecnologia podem contactar a Embrapa Gado de Corte, pelo telefone +67 368-2000 ou pelo e-mail é sac@cnpgc.embrapa.br.

 

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Certificação na agricultura orgânica

As mesmas razões presentes no fulcro da gênese da certificação e da rastreabilidade são encontradas para o espetacular crescimento da agricultura orgânica, ou seja, uma exigência de parcela dos consumidores por produtos obtidos de acordo com regras estritas de qualidade e inocuidade. No final da década de 90 houve um crescimento de 200% na área de agricultura orgânica da UE e dos EUA. Estima-se que, em 2003, 17 milhões de hectares tenham sido cultivados no regime de agricultura orgânica. A Austrália é o recordista de área (7,7 milhões de ha), seguida da Argentina (2,8 milhões de ha) e da Itália (1 milhão de ha).   De acordo com o conceito da FAO, a agricultura orgânica é um sistema holístico de gestão da produção, que fomenta e melhora a qualidade do agroecossistema, dos ciclos biológicos e da atividade biológica do solo. A agricultura orgânica está lastreada na preservação ambiental, no uso de insumos considerados naturais, na preocupação social, com foco em um nicho negocial onde a certificação é o lastro da credibilidade, posta a dificuldade para o consumidor diferenciar um produto agrícola orgânico de um similar convencional.

A agricultura orgânica se baseia em normas de produção específicas, objetivando constituir um sistema de produção sustentável dos pontos de vista ambiental, social, técnico, econômico e comercial. Para tanto, regras estritas são estabelecidas, sendo a Instrução Normativa no. 7 do MAPA (17/05/99) o documento que normatiza a agricultura orgânica no Brasil.

 

Regras
Para ser qualificada como agricultura orgânica, existem diversas restrições a insumos e práticas da agricultura convencional que devem ser respeitadas. Os insumos como fertilizantes, sementes e defensivos são os mais visados. Por exemplo, os fertilizantes aprovados não podem sofrer processamento para solubilização de nutrientes, sendo permitidos composto, esterco, esterco líquido ou chorume, urina, restos de cultura, adubação verde, restos industriais, farinhas de chifres, sangue, ossos, pelos e penas, tortas, vinhaça, algas e derivados, peixes e derivados, ó de serra, cascas e derivados, não contaminados por conservantes, enzimas, se produzidas naturalmente, cinzas, pó de rocha (basalto ou granito),argilas (como bentonita ou biotita-mica) ou ainda vermiculita, pó de algas e extratos.
  Cultivares transgênicas constituem a suprema heresia e agrotóxicos sintéticos são terminante vedados. São permitidos agentes de controle biológico, armadilhas (luminosas ou de feromônios), repelentes, preparados que estimulem a resistência natural das plantas ou que inibam a ocorrência de pragas e doenças, como o chorume de urtiga, o chá de artemisia ou de cavalinha. As doenças devem ser controladas com enxofre, bentonita, calcário de algas, pó de rocha, permanganato de potássio, calda bordalesa, cal ou extrato de plantas.

Instituições certificadoras
Em virtude da plêiade de exigências, todo o produto orgânico é, necessariamente, certificado. As normas de certificação orgânica seguem o padrão da IFOAM (International Federation of Organic Agriculture Movements) e da OCIA (Organic Crop Improvement Association). Na Europa, a certificação segue o padrão ISSO 65. No Brasil, o órgão regulamentador é o MAPA, cuja IN no. 7 estabeleceu as normas de produção, tipificação, processamento, envase, distribuição, identificação, certificação da qualidade para os produtos orgânicos de origem vegetal e animal.
  A certificação da agricultura orgânica é feita através de ONGs do ramo. No Brasil, os principais certificadores são o Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento (IBD), a Associação de Agricultura Orgânica, a Cooperativa Colméia, a Associação de Agricultores Biológicos (ABIO), a Associação de Agricultura Natural (ANC), a Fundação Moikiti Okada, a Assesoar, a Associação de Agricultura Orgânica do Paraná (AOPA), a Rede Ecovida de Agroecologia, a Associação Orgânica de Santa Catarina e a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento Rural Sustentável (Fundagro – SC). Algumas certificadoras internacionais estão operando no Brasil, como a FVO americana, a BCS Oko Garantie alemã e a Ecocert francesa.

Combustíveis fósseis X Transgênicos

Décio Luiz Gazzoni

A edição do JL de 16/11 abordou uma pesquisa do Departamento de Química da UEL, demonstrando que mais de um terço das chuvas no campus da UEL, entre 1998 e 2003, são chuvas ácidas, com pH inferior a 5,6. Cientistas do mundo inteiro já haviam estabelecido que a principal causa da chuva ácida é a queima de combustíveis fósseis, em especial derivados de petróleo como gasolina, óleo diesel ou óleo combustível.

 

Chuva ácida
A chuva ácida é uma solução diluída de ácidos muito fortes, como o sulfúrico ou o nítrico. Ela corrói estruturas vulneráveis, especialmente metais oxidáveis; afeta a vegetação, nativa ou cultivada; prejudica a saúde humana e de animais, causando problemas nas vias respiratórias; acumula-se em reservatórios e águas subterrâneas e altera a acidez de reservas e cursos d’águas, prejudicando a fauna e a flora local. Em Londrina, o problema é embrionário e as conseqüências ainda não são facilmente visíveis.
  Entretanto, seus impactos nefastos, podem ser verificados viajando de São Paulo para a Baixada Santista. A vegetação de contenção de encostas está fortemente prejudicada, podendo causar sérios desastres com avalanches sobre as rodovias ou áreas povoadas. Entretanto, o efeito da chuva ácida é efetivamente preocupante nas grandes concentrações industriais e de veículos do Hemisfério Norte, mormente na Alemanha, no Japão ou nos EUA.

Outros impactos
Além da chuva ácida, a queima de combustíveis fósseis redunda em outros impactos mortais: o primeiro, é a geração de gases e produtos voláteis altamente cancerígenos, como os compostos poli-aromáticos, cuja alta concentração foi verificada no Terminal Urbano de Londrina. O segundo, é a emissão de gases de efeito estufa, responsáveis pela poluição atmosférica que está provocando as mudanças climáticas globais.
  Elas podem ter conseqüências catastróficas, como a elevação da temperatura média da Terra, o derretimento das calotas polares, secas devastadoras ou o flagelo das inundações. A última catástrofe, que se suspeita tenha decorrido como conseqüência da queima de combustíveis fósseis, foi a onda de calor que devastou a Europa no último verão, matando 14.000 franceses.

Transgênicos
A área cultivada com soja, algodão, milho, beterraba, canola e outros cultivos transgênicos no mundo, ultrapassa a 60 milhões de hectares. Não existem restrições ao plantio de transgênicos nos EUA, na China, no Canadá, na Austrália ou na Argentina. A União Européia havia decretado quatro anos de moratória no licenciamento de novas variedades transgênicas, suspensa em outubro passado. Durante a moratória não havia restrição ao cultivo das variedades transgênicas já licenciadas.

Impactos
Os impactos dos combustíveis fósseis não são contestados por cientistas ou pela indústria do petróleo. Todos concordam que eles são altamente prejudiciais ao meio ambiente e à saúde do ser humano, sendo uma ameaça à sobrevivência da vida na Terra, tal qual a conhecemos. Contrariamente, até hoje, não existe qualquer estudo científico que demonstre que cultivos transgênicos tenham causado, efetivamente, qualquer problema ambiental ou de saúde humana.
  O único caso de alergia (milho Bt) ocorreu por um desvio de finalidade de uso. Existem muitas hipóteses, possibilidades e especulações. Porém, após o consumo de mais de 350 milhões de toneladas de soja transgênica, produzida nos últimos oito anos, não existe qualquer evidência de que esse produto tenha causado qualquer problema ambiental ou de saúde pública.

Percepção
É esse o ponto que eu queria estabelecer. Existe uma clara diferença de percepção de risco e de "vontade" de enfrentar os dois problemas. Apesar da comprovação dos malefícios da queima de combustíveis fósseis, não existe uma única ONG no mundo que lute contra o uso de automóveis, trens, navios ou aviões movidos a petróleo. Não há protestos, pneus furados, denúncias, nem ativistas adotando cavalos ou carroças para transporte individual ou coletivo. Aeroportos, portos, estações de trens, rodovias ou ferrovias não foram destruídas ou bloqueadas para proteger o Homem, a fauna e a flora.
  No entanto, embora baseados unicamente em hipóteses, ativistas mantém a pesquisa e o uso comercial de cultivares transgênicas no canto do ringue, nas plagas brasileiras. Comparando o impacto comprovado de combustíveis e transgênicos, verifica-se que proteção da saúde e do ambiente não pode ser o mote principal. Pergunta-se: qual seria então? Será que o fato de não existirem fortes interesses econômicos, que sejam concorrentes do petróleo, auxilia a entender a razão?

Vacinas em vegetais I

Décio Luiz Gazzoni

Em artigos anteriores, ao descrever conquistas da biotecnologia moderna, particularmente os avanços obtidos por equipes de cientistas brasileiros, fomos questionados sobre a prioridade da aplicação de recursos públicos – os minguados recursos dos nossos impostos – para o desenvolvimento de pesquisas que beiram a ficção científica. Particularmente, entendemos que o investimento em Ciência e Tecnologia de boa qualidade sempre vai justificar- se, mesmo que, à primeira vista, não se vislumbre um retorno prático dos avanços científicos.   Competitividade e desenvolvimento
Como corolário dessa afirmativa, temos que, se o Brasil não acompanhar par i pasu o estado da arte da C & T, verá seus competidores distanciarem- se o suficiente para não serem alcançados, condenando-nos ao papel de país periférico. Em conseqüência, comprometemos nossa capacidade de desenvolvimento, progresso, geração de emprego e renda e ocupação do espaço comercial. Para ilustrar a importância do investimento em C & T como base para a pesquisa, o desenvolvimento, a inovação e os empreendimentos de cunho tecnológico, analisemos os desdobramentos de uma das pesquisas recentes de maior divulgação na mídia: o seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, causadora do amarelinho dos citrus.
  Visão de futuro
Quando a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo) optou pela indução de estudos na área de genômica, tinha muita clareza da importância do domínio de tecnologias de ponta, seja na agricultura ou na medicina. O investimento inicial na rede de pesquisa ONSA (Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis) foi de valor ínfimo, não interessando o seu quantitativo financeiro. Ínfimo porque, desvendado o código genético da Xylella e o funcionamento de cada um dos seus genes, o Brasil acumulou um conhecimento na fronteira da ciência que não tem preço. E que permitiu investir na elucidação do código genético de outros dois patógenos de vegetais. Primeiro foi a Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, praga séria da nossa citricultura. Em seguida, foi decifrado o DNA da X. campestris, que ataca as crucíferas.

Avanço científico
A escolha do gênero Xanthomonas não ocorreu por acaso, pois espécies dessa bactéria atacam quase 400 diferentes vegetais, como o tomate, o feijão, o arroz, a mandioca, o algodão, o milho, a cana, o trigo e a soja. Assim como ocorreu com a pesquisa pioneira com Xylella, a prestigiada revista Nature acolheu um artigo dos pesquisadores brasileiros, em que foram comparados o genoma e a funcionalidade das duas bactérias. A comparação tinha como objetivo analisar as diferenças de comportamento entre as duas bactérias, quando atacam seus hospedeiros, buscando seus pontos vulneráveis e a relação desses pontos com o respectivo DNA. Decifrado este enigma, estará aberto um campo fértil para o controle dessas pragas agrícolas.
  A pesquisa básica
Os pesquisadores estudaram apenas 100 genes, entre os 4.322 da X. citri e os 4.079 da X. campestris. Observaram que, apesar de as duas bactérias serem muito próximas filogeneticamente, possuem alguns comportamentos muito diferentes. Enquanto a X. citri sobrevive sobre a epiderme dos ramos ou dos frutos da laranjeira, causando o cancro cítrico, a X. campestris instala- se nos tecidos internos do repolho e circula através do xilema da planta. A hipótese dos cientistas foi de que, se existem hábitos diferentes, então eles são devidos a genes diferentes. Investiu-se na identificação dos genes que permitem à bactéria penetrar nos tecidos dos hospedeiros, o que ocorre de maneira diferente para cada uma delas. Foi estudada a preferência, ou atração, das bactérias em relação a determinadas substâncias químicas produzidas pelas plantas.
  Aplicação
Realizando estudos do gênero, os cientistas concluíram haver, pelo menos, 200 genes na espécie X. campestris que não existem na X. citri. Estes genes poderiam estar relacionados com as interações entre as bactérias e seus hospedeiros. Se comprovada a hipótese, os cientistas poderiam investir na inibição ou na inativação dos genes, ou das substancias por eles produzidas, evitando que as bactérias se estabeleçam sobre o seu hospedeiro. Os pesquisadores brasileiros investiram em três possíveis rotas tecnológicas para enfrentar estas bactérias, gerando benefícios para o agronegócio e a sociedade em geral. Este será o tema do artigo da próxima semana.

Vacinas em vegetais II

Décio Luiz Gazzoni

Concluída a pesquisa básica, os cientistas investem na aplicação prática. A primeira via é estudar porque uma espécie da bactéria causa cancro e outra digere o tecido. Os cientistas descobriram que um gene de X. citri, denominado PTHA, promove o crescimento desordenado do tecido, resultando no cancro das plantas cítricas. O estudo mostrou que a X. campestris não possui esse gene, mas foram encontradas nessa bactéria enzimas que digerem a parede celular das plantas. A partir dessa descoberta, os cientistas necessitam caminhar mais dois passos. O primeiro deles será descobrir qual o gene (ou agrupamento de genes) que comanda a produção das enzimas que destroem a parede celular das células. O segundo passo será descobrir substâncias químicas que bloqueiem estas enzimas. Sem as enzimas que digerem a parede celular, a bactéria não penetrará nos tecidos vegetais, impossibilitando seu estabelecimento no hospedeiro.   Segunda via: bloqueio da defesa
Sempre que atacados por patógeno, os vegetais identificam o agente invasor pelas substâncias químicas que o caracterizam, permitindo sintetizar ou mobilizar antídotos - substâncias químicas que reagem ao agressor, evitando o seu ingresso, imobilizando-o, destruindo-o ou impedindo que se desenvolva. Se bem sucedido nessa missão, o sistema imunológico das plantas protege o hospedeiro contra as pragas. No estudo em tela, os cientistas verificaram que cada espécie de Xanthomonas tinha hospedeiros específicos. Intuiu-se que cada espécie da bactéria produz substâncias químicas próprias, que disparam os mecanismos do sistema imunológico de algumas plantas, mas não têm o mesmo efeito em outras. Assim, essas substâncias químicas têm o poder de enganar as "sentinelas" das plantas, abrindo suas defesas para o ataque da bactéria. Os genes responsáveis por essas substâncias são "genes de avirulência". Para a X. citri foram identificadas dez enzimas que produzem antígenos-O específicos que, quando não são reconhecidos pelas defesas da plantas, possibilitam a infecção.

Abrindo as defesas
O gene PTHA é o responsável pela avirulência, mas esta não é uma regra geral. Os cientistas transferiram o PTHA para o DNA de outra espécie de Xanthomonas, o que impediu que ela infectasse o seu hospedeiro natural (o arroz), porque o gene acionou as defesas da planta. Como o leitor percebe, o próximo passo dos cientistas será descobrir substâncias que bloqueiem a ação dos genes, inativem a ação das enzimas ou impeçam a atuação das substâncias que enganam a planta, fazendo com que ela não reconheça o produtor da substancia como um agressor. Se a planta reconhecer o agressor, existe sempre a possibilidade de o sistema imunológico obstruir a ação do patógeno.
  Terceira via: proliferação
Vimos anteriormente que a X. citri ataca a epiderme das plantas cítricas, enquanto a X. campestris atua no interior dos tecidos. Os cientistas estudaram a bioquímica dos processos e buscaram a sua relação com os genes. Descobriu-se que a X. campestris supre sua necessidade de nitrogênio através de nitratos e nitritos do solo, utilizando o nitrogênio das substâncias existentes na seiva apenas de forma marginal. Já a X. citri atua de forma oposta, pois ela produz enzimas que permitem "quebrar" proteínas em partes menores (peptonas e peptídios). Estas são absorvidos pela bactéria com a ajuda de outra substância química, denominada transportador (PPA). Quando for descoberta uma substância que iniba a produção ou a atividade das enzimas que digerem as proteínas, ou que iniba a síntese ou a ação do PPA, a bactéria não obterá seu suprimento de nitrogênio. Assim, limitará seu desenvolvimento e sua reprodução, comprometendo sua habilidade patogênica, podendo chegar até a eliminar a bactéria da planta.
  Investimento em C & T e desenvolvimento
Para tanto, o código genético das plantas precisaria ser trabalhado, para que os genes que codificam para as substâncias que atuam no PPA, ou nas enzimas de digestão das proteínas, possam ser incorporados ao seu DNA. Com esses exemplos acreditamos haver evidenciado a importância da pesquisa na fronteira da ciência, que sempre será a base de inovações tecnológicas. Entretanto, este caminho somente estará aberto quando ocuparem postos-chaves pessoas com privilegiada visão de futuro, como tem acontecido com os dirigentes da FAPESP.

The Bioterrorism Act

Décio Luiz Gazzoni

Os aviões transformados em mísseis, que implodiram o WTC, ganham a característica de um "case": como transformar uma ameaça em oportunidade. O ataque terrorista foi o mote para justificar a invasão do Iraque pelos EUA, encobrindo seus reais objetivos, entre eles pagar as contas da campanha eleitoral presidencial americana e a necessidade de garantir um fluxo regular de petróleo para um país que, apesar de deter reservas para apenas quatro anos de consumo, queima 25% da energia fóssil do mundo.

O Ato
Amanhã entra em vigor uma nova lei americana. Sem alarde, antecedendo à invasão do Iraque, o Presidente Bush assinou a Lei de Bioterrorismo, (Public Health Security and Bioterrorism Preparedness and Response Act of 2002). Publicada em 12/6/2002, a Lei entrou em vigor, parcialmente, em 11/9/2002, devendo os demais dispositivos serem regulamentados até 13/12/2003. Entretanto, a Lei prevê que, caso não seja regulamentada no prazo acima, os seus dispositivos passam a ser auto-aplicáveis.
  Protecionismo
Em 2001, este escriba foi designado para a Comissão de Prevenção ao Bioterrorismo do Governo brasileiro, representando a Embrapa. Foi uma oportunidade para familiarizar-se com os bastidores do assunto. Analisando o Bioterrorism Act percebe-se que a preocupação com segurança alimentar entremeia-se com eventuais barreiras técnicas à exportação, dificultando e encarecendo o acesso ao mercado americano. Na vigência do Ato, crescerão os custos e as dificuldades burocráticas dos exportadores brasileiros. Cálculos preliminares apontam que os custos para o registro e aviso prévio dos exportadores estão estimados em US$720 milhões anuais.

O Princípio da Precaução
Em junho passado, publiquei uma extensa análise da Lei de Bioterrorismo, na Revista Agrinova. O texto pode ser acessado em www.gazzoni.pop.com.br. Como este espaço é curto, vou focar no protecionismo que pegou carona na lei. A lei adota o critério de "existência de fato razoavelmente digno de crédito", que legitima todas as ações contidas no Ato, porém fere o disposto no Artigo 2.2 do TBT (Tratado de Barreiras Técnicas), que exige base científica para avaliar o risco quando da elaboração de um regulamento técnico. Ouviremos dos americanos a alegação de que o TBT, no caput do Artigo 2, prevê a adoção de medidas visando a segurança nacional e a proteção da vida humana, da saúde animal e da sanidade vegetal. Uma alegação derivada, que também será utilizada pelos advogados e negociadores americanos, é de que o país se encontra em guerra contra o terrorismo, o que justifica a adoção unilateral de medidas excepcionais. E, last but not least, está sendo aplicado o Princípio da Precaução, pela ausência de evidências científicas, em face de um perigo desconhecido e da imponderabilidade do risco.
  Mau uso
Mesmo considerando lídimas as argumentações, abre-se uma larga avenida para, a título de prevenção ao terrorismo, utilizar o Ato como barreira técnica. Um oficial de porto americano disporá do incomensurável poder de deter uma mercadoria por até 30 dias. Incorrem custos e cláusulas contratuais em decorrência da detenção, temas sobre os quais o silêncio da responsabilidade governamental - omitida no Ato - é assaz eloqüente. Os alimentos caracterizam-se pela perecibilidade ou limite de tempo entre o processamento e o consumo, sem que suas características se alterem, deprecie-se o seu valor comercial, ou seu uso proposto seja impedido. O atraso na comercialização pode anular vantagens competitivas, sem que haja previsão de reparação do dano, para a qual o detentor da mercadoria não concorreu.
  Novas técnicas
Outra barreira técnica pode ser vislumbrada na indução ao desenvolvimento de novas metodologias de análise e diagnóstico, às quais os concorrentes estrangeiros não terão acesso imediato. Técnicas mais sofisticadas permitirão a adoção de padrões mais rígidos, mais difíceis de cumprir e de custo mais elevado. Nesse ponto, o Ato confronta, novamente, com o disposto no TBT, que reconhece as dificuldades técnicas e financeiras dos países emergentes em cumprir regras estritas. Enquanto os EUA continuarem com seu discurso liberal e sua prática protecionista, a nós, terceiro mundistas, resta investir fortemente em tecnologia e sanidade agropecuárias e no estabelecimento de condições laboratoriais que emulem aquelas existentes nos EUA, para mitigar as barreiras que nos são impostas.

Efeito Orloff

Décio Luiz Gazzoni

Há mais de uma década atuo como consultor internacional do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), tendo trabalhado em diversos países da América Latina e do Caribe. Os objetivos específicos variam, porém o objetivo geral quase sempre é reconstruir instituições destruídas por governantes incompetentes. Desenvolvendo projetos que ascendem a dezenas de milhões de dólares, aprendi que o povo paga para construir as instituições, paga caro para que sejam destruídas e paga ainda mais caro para reconstruí-las. E nunca aprende a lição própria nem a dos vizinhos, razão do efeito Orloff.   Neoliberalismo
O extremo a que Menen e Cavallo levaram o neoliberalismo econômico conduziu a Argentina ao desastre que acompanhamos pela mídia. Endividaram a Nação até a alma, elevaram os juros às alturas, impuseram superávits primários estratosféricos e, mesmo assim, não conseguiram pagar uma dívida que, queiramos ou não, possui duas características aparentemente contraditórias: é impagável e já foi paga. No Brasil, essa sempre foi a visão do Partido dos Trabalhadores – pelo tamanho do spread nos juros que a banca internacional impõe aos países pobres, com cinco anos de pagamento do serviço da dívida pagou-se também o principal. Por essa razão o presidente Kirchner decidiu que não vai pagar a dívida externa da Argentina às custas das verbas da saúde, da educação e da segurança.

Diagnóstico
Há um mês o BID outorgou-me a missão de definir prioridades para aplicação de recursos do Banco para auxiliar no alavancamento da economia argentina. Para tanto era necessário responder a algumas perguntas. A primeira era: qual o cenário previsível para um crescimento sustentado da economia austral? O que me pareceu mais provável é o mesmo que se visualiza no Brasil: crescimento com fulcro nos agronegócios (Efeito Orloff?). Nessa eventualidade, quais seriam as principais ações conducentes ao desenvolvimento? Vislumbrei cinco delas:

a. Aumento e consolidação da participação dos produtos agrícolas argentinos, no mercado globalizado;

b. Garantia de qualidade e inocuidade dos produtos alimentícios argentinos;

c. Agregação de valor na origem dos produtos;

d. Desenvolvimento sustentável do meio rural;

e. Redução da pobreza, das disparidades regionais e integração sub-continental.

Sanidade Agropecuária
Estabelecido o macrodiagnóstico, é mister identificar os gargalos que prejudicariam o soerguimento da economia. Como parte da missão, coube-me efetuar um diagnóstico do sistema de sanidade agropecuária. Da análise saltava à vista que de "sistema" ele detinha apenas o nome. Compõe-se de uma constelação de órgão federais, provinciais e municipais, cuja estrela maior é o SENASA, entidade do governo federal encarregada da sanidade agropecuária. Entretanto, para cumprir sua missão, vê-se enredada com inúmeros outros órgãos das áreas agrícola, ambiental e de saúde, sem que haja uma coordenação efetiva, penalizando o empresário e o produtor rural, em prejuízo de maior eficiência nos serviços sanitários.
  Institucionalidade
Fixei-me no SENASA. Lá encontrei técnicos muito competentes, similares aos que conheci na Europa ou nos EUA, sem que houvesse contrapartida institucional para esses bons técnicos. Os desajustes governamentais, a inépcia dos governantes, a excessiva intromissão da política partidária em questões exclusivamente técnicas, o populismo de reduzir as taxas públicas cobradas pelo SENASA minaram seu orçamento e tornaram-no uma instituição sem organicidade. Os salários despencaram, não existem políticas institucionais de comunicação ou de gestão da informação, a legislação é dispersa, o órgão centralizou seus quadros e serviços em Buenos Aires, os benefícios da informática mal adentraram ao Instituto, suspeitas e imagem distorcida minam sua credibilidade.
  Reconstruir
Indiquei ao BID a necessidade de investir, prioritariamente, nos aspectos institucionais e organizacionais, elencando uma série de políticas a serem implementados. Sem esse investimento, os bons técnicos da organização jamais encontrarão meio de cultura adequado para expressar sua capacidade. Uma vez curada a enfermidade institucional, provocada por anos de gestões que não condiziam com a capacidade técnica do órgão, será possível voltar a investir nos processos técnicos. Lamento, mais uma vez, que as decisões políticas erradas permanecerão impunes, pois quem pagará a conta será, novamente, o bolso do povo.

Reforma Agrária: a necessidade de novos rumos

Décio Luiz Gazzoni

Puxando um pouco pela memória lembraremos que, em março de 2003, o Presidente Lula visitou o Assentamento Itamarati (Ponta Porá, MS), quando lhe foi asseverado que o mesmo produziria 60 mil toneladas de grãos em seus 25.000 ha, garantindo renda mensal de R$1 mil por família assentada - um modelo para a Reforma Agrária no país.

Como bom repórter, Luiz Maklouf Carvalho (OESP) voltou ao assentamento após três meses, para conferir o cumprimento das metas, defrontando-se com uma realidade antagônica à promessa efetuada ao Presidente da República. A íntegra de sua reportagem (Assentamento Itamarati ou "...levaram o presidente no bico") encontra-se em http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2003/07/06/pol018.html. Sintetizando o que ocorre no acampamento, o coordenador da CUT/MS, Vilson Balhs Hartinguer desabafou: "Exageraram muito e o presidente acreditou. Levaram o presidente no bico".

 

O repórter aponta que "A produção de soja e milho irrigados da safra 2002/2003 foi de 22 mil toneladas, um terço do que produzia a Fazenda Itamarati; pelo menos 277 famílias continuam sem renda e com dificuldades para as três refeições diárias; a maior renda mensal das famílias (aquelas que receberam alguma remuneração) não ultrapassou os R$ 330; a energia utilizada pelos pivôs centrais continua a ser paga pelo governo estadual, através do desconto do ICMS da Itamarati Agropecuária, a fornecedora de energia, que ainda pertence a Olacyr de Moraes - são outros 25 mil hectares produtivos do outro lado do assentamento."

Prossegue o repórter "Há outros problemas no Assentamento Itamarati: cinco pivôs centrais de irrigação estão em processo irreversível de sucateamento e tem ocorrido furto de peças; duas represas romperam e podem arrebentar; há montes de vasilhames com veneno agrotóxico a céu aberto; só existe um médico para uma população de 8 mil pessoas; o precário posto de saúde não funciona nos fins de semana; a escola merece o apelido de sardinha em lata; os ônibus que transportam as crianças estão superlotados; parte das estradas internas necessita de pronta recuperação; a água é de poço, e nem todos conseguiram obtê-la; a assistência técnica está reduzida a uma dezena de funcionários públicos estaduais que nem sempre estão por lá."

Fazenda modelo

Conheço a Fazenda Itamarati há mais de 20 anos. A Itamarati é um paradigma de produtividade, qualidade e de gestão competente há mais de três décadas. Dividida ao meio, para pagamento de dívidas da holding com o Governo, a comparação lado a lado denuncia a falência do modelo de reforma agrária que vem sendo praticado no Brasil.   A Itamarati, ao longo do tempo, constituiu-se em um exemplo de convivência comunitária a ser emulado, com abastecimento de água e luz, saneamento básico, ensino gratuito, transporte, lazer, enfim, atendimento às demandas da comunidade de colaboradores, que residiam na própria fazenda. A qual dispunha de maquinário próprio para abertura e conservação de estradas e oficinas para máquinas, tratores e implementos.   A versão corrente na região indica que, atualmente, os pivôs do assentamento foram arrendados para um agricultor paranaense. Consta que, além de seu conhecimento tecnológico, o agricultor levou máquinas e operadores que permitiram produzir milho e soja na área irrigada.

Agressão ambiental e baixo retorno

O repórter Luiz M. de Carvalho encontrou centenas de embalagens de agrotóxicos, já utilizadas, empilhadas ao lado de um escritório, em flagrante violação à Lei e um desrespeito à saúde e ao ambiente. A legislação brasileira obriga os usuários a devolver, prontamente, as embalagens vazias de agrotóxicos para reciclagem.

 

 A partir dos registros do assentamento, o repórter calculou a renda dos assentados: "Foram 20.460 sacas de soja, vendidas por R$ 656.710,87, e 91.916 sacas de milho, vendidas por R$ 1.724.477,29. Total da receita bruta: R$ 2.759.188,16. Total dos custos: R$ 1.921.000 (R$ 975 mil só com herbicidas). O lucro líquido foi de R$ 838.188,16. Dividido pelas 320 famílias, deu R$ 2.619,33 pela safra - ou R$ 218,27 mensais por família. Na média de quatro integrantes em cada uma, dá R$ 54 mensais para cada assentado do MST."

E o repórter denuncia: "Isso nos números. Na realidade, 95 famílias nada haviam recebido até o dia 24 de junho".

  Este exemplo, infelizmente, não é isolado – e até não é dos piores. Há casos de fracasso total do assentamento. A lição a extrair é que, se um assentamento na Fazenda Itamarati – um paradigma internacional de competitividade e eficiência econômica – redundou em fracasso, não se pode ter qualquer expectativa positiva, continuando a exercitar o modelo atual. É necessário buscar alternativas, cujo foco seja a sustentabilidade.

Proposta ousada

O empresário Nelson Silveira é diretor da Enguia, empresa geradora de energia elétrica a partir de termoelétricas. Em conversa com o empresário, tive oportunidade de conhecer um projeto ousado e visionário, que merece uma reflexão cuidadosa, não apenas sob o enfoque econômico ou energético, mas como uma alternativa ao modelo de reforma agrária predominante.

  O fulcro do projeto é a substituição do petrodiesel utilizado nas suas termoelétricas por biocombustíveis, produzidos localmente. O projeto absorverá 310 milhões de litros de biodiesel por ano, gerando 800 MW de energia elétrica. O uso de biodiesel permite mitigar a emissão de gases de efeito estufa, reduzir a dependência brasileira de petróleo, movimentar a economia regional e investir na inclusão social de famílias de sem terra. Por mais herético que pareça, à primeira vista, o MST está sendo proposto como um dos parceiros do empreendimento.   A empresa dispõe-se a adquirir 540 mil hectares de terra no Nordeste, aptos ao cultivo de oleaginosas e de outras culturas, ao longo dos cinco anos previstos para a implantação do empreendimento. A área será subdividida em projetos de 10.000 ha, comportando 560 famílias, cada qual cultivando 18 ha. Os empreendedores fornecerão os equipamentos e insumos para o primeiro cultivo da área. O projeto prevê a assistência técnica e gerencial permanente às micro-empresas familiares e o treinamento constante dos participantes.

Mega-assentamento

A iniciativa assentaria 30.260 famílias, mais do que o INCRA assentou em todo o Brasil, durante o ano de 2003. Os módulos ocupariam 18 ha e cada família constituiria uma microempresa. O empreendimento compreenderia mais de 200.000 postos de trabalho, ou 2% da promessa de empregos do Presidente Lula. Ao final de 10 anos de cultivo da terra e cumpridos os dispositivos contratuais, cada família receberia o título de posse definitiva da terra.

As condições incluem a obrigatoriedade do cultivo de uma oleaginosa (mamona, por exemplo) em 15 hectares, sendo o espaço intercalar e os restantes três hectares plantados com milho, arroz, feijão, caupi, algodão, frutas, hortaliças ou forrageiras. A mamona seria adquirida pela Enguia, para a produção de biocombustível. Cada assentado terá liberdade para decidir pela escolha dos demais cultivos ou criações bem como pelo seu uso ou destino.

 

Além do acesso à terra, a empresa garantiria uma renda mensal mínima de um salário mínimo, a partir da instalação da família no projeto, independente do início da entrega da mamona. Entretanto, os cálculos apontam para uma renda familiar mensal de R$450,00 pela entrega da mamona e R$250,00 com a venda de feijão, além de outras rendas. Compare-se esses números com os obtidos no Assentamento Itamarati para aquilatar a sustentabilidade da proposta.

O projeto é mais amplo e mais complexo que a análise superficial aqui apresentada. Em nosso entender, ele merece uma atenção séria do Governo e das lideranças empresariais, pois pode constituir-se em alternativa para enfrentar o desemprego e o problema de acesso à terra. Caso o Governo e as empresas decidam adotar políticas de substituição de petrodiesel por biocombustíveis, provenientes de comunidades vinculadas à agricultura familiar, estaremos organizando um novo pacto social, da mais profunda repercussão no futuro do país, com desdobramentos de âmbito internacional.

Automarketing

Décio Luiz Gazzoni

Ato1: Depois de ouvir a quarta música "cantada" por Caetano Veloso, comentei com meu irmão, na praça de alimentação de um shopping, que eu possuía toda a discografia do Cae, porém não reconhecia aquele CD. Ele me inquiriu, incrédulo: qual é a brincadeira? Aí foi a minha vez de não entender, afinal eu me julgava "macaca de auditório" do Caetano. Para meu espanto, ele me levou até o local onde um rapaz tocava e cantava, no estilo banquinho e violão. Era um sósia perfeito de Caetano Veloso, enganaria até o próprio!

 

  Ato 2: Caminhando pela Gemeentestraat (Antwerp, Bélgica), ouvi os acordes iniciais da Tocata e Fuga em Ré Menor de J. S. Bach. Logo identifiquei um acordeonista (gaiteiro, para os gaúchos!) que, de olhos fechados pela concentração, executava a obra-prima. E assim o fez durante 18 minutos, sem errar uma nota (ao menos na avaliação de quem já ouviu a peça mais de 100 vezes). A obra foi escrita para órgão barroco e o artista anônimo deve ter efetuado a adaptação e os arranjos para acordeona.

 

 

  Ato 3. Os degraus da escada rolante da estação Hotel de Ville, do metrô de Paris, aproximam-se da plataforma dos trens enquanto os sons de um violino afinadíssimo enlevam os ouvidos. Um violinista anônimo adaptara o Concerto para Violino e Orquestra de Mendelssohn, para os corredores do metrô, transmutados em sala de concerto. Parei para ouvir a execução. Em recompensa à moeda deixada no chapéu, fomos brindados com Moto Perpétuo de Paganini, uma peça dificílima, reservada para os virtuoses mostrarem toda a exuberância de sua arte.

 

  Ato 4. À guiza de tributo singelo a um dos maiores gênios da Humanidade, sempre que vou a Londres permaneço longo tempo em veneração diante de um dos oito girassóis de Van Gogh, exposto na National Gallery. Em uma dessas oportunidades, uma estudante de arte duplicava o trabalho do grande mestre, em um cavalete armado em frente à obra-prima. Eu olhava para o original e para a cópia, imaginando a habilidade de um perito para identificar um plágio ou falsificação, tão incrível era a semelhança de traços, estilo e cores entre Os Girassóis de Van Gogh e os girassóis da estudante.

Os exemplos extrapolam as artes e invadem a ciência, a política, o esporte, a comunicação, qualquer atividade humana: habilidades similares não significam reconhecimento equivalente. Pode o leitor argumentar que os casos descritos não exigem muita criatividade, as pessoas reproduziam a criatividade alheia. Entretanto existem inúmeros casos em que um gênio intui uma teoria ou gera um invento, que não é reconhecido. Tempos depois alguém retoma a senda e leva a glória para a posteridade. Darwin é tido e havido como o criador da teoria da Evolução das Espécies, por sua publicação "A Origem das Espécies" (1859). Antes dele James Hutton (1794), William Wells (1818) e Patrick Mathew (1831) haviam publicado estudos de mesmo teor, obscuros até hoje.   Comparemos Van Gogh a Picasso. Dois gênios, só que Van Gogh - que morreu doente, louco e pobre - sobrevivia da caridade do irmão Téo, que comprava seus quadros sem valor de mercado à época, para que ao irmão não faltassem cama, comida, telas e tintas. O valor atual de uma destas telas permitiria a Van Gogh passar a vida no fausto. Já Picasso morreu venerado e milionário, fortuna que amealhou desde as primeiras obras, imediatamente reconhecidas. Iguais na genialidade artística, o que distinguiu os dois grandes mestres foi a habilidade inata do marketing pessoal. Qualquer dos artistas cujos "cases" descrevi acima teria uma grande carreira, se dispusesse dessa habilidade que a Natureza lhes negou. Todavia permanecerão anônimos, a menos que um Mecenas mude seu destino.   O folclore diz que comemos mais ovos de galinha porque ela cacareja (ou seria o galo?) sempre que produz uma "obra-prima", desprezando ovos de outras aves, maiores e mais nutritivos. Talvez isto explique porque tantos escritores de talento morrerão na obscuridade enquanto Paulo Coelho é cantado em prosa e verso, traduzido para 100 línguas e vendendo milhões de livros... vazios!

Escrevi tudo isso para lhe dar uma sugestão: se neste Natal ninguém lhe desejou, ardentemente, muita habilidade de marketing pessoal, aproveite e faça um pedido - embora tardio - ao Papai Noel. Talvez cacarejando e valorizando cada golfada de ar respirado ou expelido, você possa chamar a atenção para suas virtudes, por vezes inferiores a quem vive sob holofotes permanentes.

Cambalache

Décio Luiz Gazzoni

Com a ressaca das festas de final de ano, ninguém tem vontade de discutir negócio ou agronegócio. Mas, já é uma tradição refletir sobre o passado e pensar no futuro. Então aproveite e reflita sobre a letra do tango Cambalache, escrito por Enrique Santos Discépolo em 1934, tão atual e que, infelizmente, parece que ainda terá muito futuro.

Que el mundo fue y será una porquería ya lo sé...

(¡En el quinientos seis y en el dos mil también!).

Que siempre ha habido chorros, maquiavelos y estafaos,

contentos y amargaos, valores y dublé...

Pero que el siglo veinte es un despliegue

de maldá insolente, ya no hay quien lo niegue.

Vivimos revolcaos en un merengue

y en un mismo lodo todos manoseaos...

¡Hoy resulta que es lo mismo ser derecho que traidor!...

¡Ignorante, sabio o chorro, generoso o estafador!

¡Todo es igual! ¡Nada es mejor!

¡Lo mismo un burro que un gran profesor!

No hay aplazaos ni escalafón,

los inmorales nos han igualao.

Si uno vive en la impostura y otro roba en su ambición,

¡da lo mismo que sea cura,

colchonero, rey de bastos, caradura o polizón!...

¡Qué falta de respeto, qué atropello a la razón!

¡Cualquiera es un señor! ¡Cualquiera es un ladrón!

Mezclao con Stavisky va Don Bosco y "La Mignón",

Don Chicho y Napoleón, Carnera y San Martín...

Igual que en la vidriera irrespetuosa de los cambalaches

se ha mezclao la vida,

y herida por un sable sin remaches

ves llorar la Biblia contra un calefón...

¡Siglo veinte, cambalache problemático y febril!...

El que no llora no mama y el que no afana es un gil!

¡Dale nomás! ¡Dale que va!

¡Que allá en el horno nos vamo a encontrar!

¡No pienses más, sentate a un lao,

que a nadie importa si naciste honrao!

Es lo mismo el que labura noche y día como un buey,

que el que vive de los otros,

que el que mata, que el que cura o está fuera de la ley...

Vaca Louca, Saúde e Mercado

Décio Luiz Gazzoni

Torna-se progressivamente cristalino que as batalhas comerciais no mercado globalizado são vencidas por quem dispõe de quatro fatores: tecnologia na fronteira do conhecimento; ambiente sanitário à prova de questionamento; habilidade e agressividade negocial; e capacidade de impor seus interesses. A abundância de outros fatores de produção auxilia, porém não é o determinante para a liderança comercial. Por exemplo: os maiores exportadores de café solúvel do mundo são Holanda, Alemanha e Itália, países que não cultivam um único pé de café!

O Mal da Vaca Louca
Conhecida entre os cientistas por encefalopatia espongiforme bovina, ou pela sigla inglesa BSE, é uma doença letal e incurável, que ataca o sistema nervoso, em especial o cérebro do animal. Seu agente causal é um príon, uma proteína de ocorrência natural nos animais. Entretanto, quando o príon se modifica e é produzido em quantidades anormais pelo organismo, ocorre uma degeneração das células do cérebro, as quais morrem, provocando buracos que fazem o mesmo assemelhar-se a uma esponja - donde o nome "espongiforme". As funções cerebrais e a transmissão nervosa comprometem-se irreversivelmente, suscitando desequilíbrio motor e tornando o animal furioso.
  Transmissão
Como não existe um microrganismo associado à doença, não há contaminação intervivos. A doença passa de um animal para outro através da alimentação, quando esta é produzida com carcaças de animais infectados. A BSE tem se restringido aos países ricos, pois aqui nos trópicos nossos rebanhos são alimentados a pasto, não havendo risco de contaminação. Os príons que causam a BSE são encontrados na espécie humana, tendo função fisiológica obscura. Entretanto, príons modificados são responsáveis pela doença de Creutzfeldt-Jacob, que produz distúrbios mentais semelhantes aos sintomas do Mal da Vaca Louca. O temor do surgimento da doença em humanos, pela ingestão de animais contaminados, é o principal motivo dos embargos comerciais de carne produzida em países onde surgem casos de BSE.

Mercado no curto prazo
Imediatamente após os EUA reconhecerem o caso de BSE, fecharam-se os mercados de exportação da carne americana. O que virá a seguir tem muito a ver com a afirmativa do caput da coluna. Os EUA dispõem de um sistema de sanidade agropecuária excepcional. Todavia, mesmo os melhores sistemas podem ter o bloqueio "furado" por um caso de BSE, pois o diagnóstico preventivo é muito difícil e caro. Por não ser uma moléstia contagiosa e de evolução lenta, um animal pode permanecer contaminado por anos, de forma assintomática. Pode morrer por outro motivo, ou mesmo ser abatido, sem um diagnóstico de BSE e sua carcaça ser utilizada para arraçoamento, contaminando outros animais. Porém, quando o sistema sanitário é de elevado status, é fácil traçar o caminho da enfermidade, determinar a sua extensão, circunscrever o problema e retornar ao estágio anterior. De tecnologia para tanto os EUA também dispõem. Como não falta a esse país agressividade comercial e força para impor sua vontade, o mercado para a carne americana deve ser reaberto no curto ou médio prazo.
  Longo Prazo
Porém, a seqüência de casos de BSE (Europa, Canadá, EUA) está tornando os consumidores arredios à carne de rebanhos alimentados com rações contendo restos de animais. Aí viria o espaço do Brasil, não fora nosso pecado mortal de possuirmos uma longa folha corrida de febre aftosa. Nossa história de país livre de aftosa remonta há meros cinco anos. O mesmo vale para a Argentina, às voltas com recente caso de focos de aftosa. Assim, entendo que, estruturalmente, o mercado vá se desviar, parcialmente, para outras carnes, em especial frango, onde o Brasil pode ampliar suas exportações. E, por outro lado, os restos de animais devem ser banidos das rações, o que abre espaço para a soja, principal fonte protéica para alimentação animal. Novamente, o Brasil vai se beneficiar, pois essa perspectiva deve manter o mercado com preços firmes nos próximos anos, reforçando as notícias positivas do aumento de compras da China. E, quando dispusermos de um sistema sanitário regional de elevada qualidade, à prova de qualquer barreira, expandiremos as exportações de carnes bovinas para mercados muito exigentes, que hoje preferem substituir a carne americana pela australiana. Motivo: a Austrália investe, pesadamente, em sanidade agropecuária.

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