Biodiesel

Décio Luiz Gazzoni

Assim como o sol brilha de dia e a lua de noite, dia virá em que não existirá mais petróleo. A Humanidade tem dificuldade para lidar com desastres anunciados, por mais evidentes que sejam. Chegamos perto do desastre com as crises do petróleo dos anos 70, o que impulsionou o Pró-álcool. Porém, o preço do petróleo baixou e o do açúcar subiu, e a auto-suficiência petrolífera liquefez-se qual sonho de noite de verão. Deixou em sua esteira uma fiada de carros a álcool micados e consumidores desconfiados. Agora, ganha força, em escala mundial, a utilização de biodiesel - obtido de óleos vegetais - que permite substituir o petrodiesel.   Estratégico
Energia infinita, barata e limpa é o legado que precisamos deixar aos nossos filhos e netos. O Brasil é dos poucos países que Deus abençoou e aquinhoou com riquezas naturais e vantagens comparativas. Elas nos conferem competitividade ímpar em um mundo cada vez mais ávido por energia, cada vez mais cara e difícil de produzir. A associação álcool e biodiesel colocaria o Brasil em uma posição extremamente confortável. Dissociaria a energia veicular das intempéries que circundam os negócios petrolíferos, permitindo formatar uma indústria química avançada, baseada no dueto álcool e óleos vegetais. O Brasil detém tecnologia para alavancar uma substituição auto-sustentada dos dois combustíveis, com redução brutal no consumo de petróleo, sustando sua importação. Em decorrência, pode-se alterar o perfil de craqueamento das refinarias, direcionando o uso do petróleo para outras finalidades. Nas projeções futuras, além de suprir o mercado interno, o Brasil será líder do comércio internacional de biodiesel.
  Usos
O biodiesel substitui o petrodiesel, sem necessidade de alteração nos motores. Adicionado ao petrodiesel, melhora a lubrificação e reduz a emissão de poluentes. Parcela ponderável da poluição causada pela queima de óleo diesel provém do enxofre. Por isso, diversos países do mundo estão impondo a eliminação do enxofre do óleo diesel. Ocorre que o enxofre é responsável pelo poder lubrificante do diesel, reduzindo o desgaste dos motores de combustão interna. Já o biodiesel possui alto poder lubrificante (muito superior ao diesel), sem o inconveniente poluidor. Tecnologicamente, é possível eliminar o enxofre no processo de refino, com posterior adição de biodiesel, para melhorar o poder lubrificante do óleo.

 

Números
O único inconveniente do biodiesel é seu custo de produção, superior ao petrodiesel, devido à falta de escala atual. O que é relativo, pois os preços de bomba não refletem o custo de produção do petrodiesel. Mesmo com preço superior, o conjunto da economia e da preservação ambiental seria beneficiado com a oferta de um mix de petrodiesel e biodiesel. A partir de 5% de adição de biodiesel, há uma melhora sensível nas propriedades do diesel, com um incremento de custo estimado de 2,5%. Para uma mistura de 20% teríamos um aumento de preço na bomba que não superaria a 10%. Esses números são meramente ilustrativos, pois não consideram ganhos de escala na produção agrícola e no processamento industrial. Em especial se considerarmos o mercado potencial, totalmente aberto. A adição de 20% de biodiesel ao petrodiesel representaria uma demanda anual de 6,4 milhões de toneladas de óleo. Tomando a soja como exemplo, exigiria uma produção adicional de 32 milhões de toneladas por ano. Significa tanta renda e emprego que político algum ousou imaginar!
  Política pública
O problema é menos tecnológico que de uma política pública. Foi a falta de uma política pública consentânea e persistente que levou o Pró-álcool ao descrédito. Não se trata simplesmente de adicionar biodiesel, ou substituir o petrodiesel. É necessário entender a revolução que ocorreria no campo, na indústria, no ambiente, na formação de renda, no nível de emprego, na oferta de alimentos e outros derivados de oleaginosas após a extração do óleo, no impacto no preço internacional, entre outros aspectos. Países como os EUA prevêem a utilização de 10 bilhões de litros de biodiesel, nos próximos anos. Seu objetivo é reduzir a poluição do ar e a chuva ácida, causada pelos gases da combustão. Os norte-americanos também estimulam a reciclagem de óleo utilizado por cadeias de "fast food", dando uma destinação a um produto que, de outra forma, é altamente nocivo ao meio ambiente. Na Alemanha, apesar de a produção de oleaginosas ser anti-econômica, já existe uma rede de 1.400 postos de serviço que vendem biodiesel. O próximo lance o tabuleiro é nosso.

Arnica

Décio Luiz Gazzoni

No Brasil, o uso fitoterápico da arnica começou meio por acaso. Na Itália, as propriedades da Arnica montana eram conhecidas. Os imigrantes italianos encontraram aqui um arbusto (Lychnophora ericoides), que exalava o mesmo odor, e que revelou possuir propriedades analgésicas e anti-inflamatórias. A dor está forte? Chá de arnica. A picada de mosquito inflamou? Coceira renitente? Infusão de arnica. A arnica consolidou-se na farmacopéia do interior do Brasil, porém gerando uma exploração predatória, que colocou a planta em condição de vulnerabilidade em seus habitats naturais.   Prospecção
A arnica compõe o arsenal fitoterápico da biodiversidade brasileira, a mais rica do mundo. O seu uso sustentado permitirá ampliar os princípios farmacológicos à disposição da sociedade e se constituirá em um rentável e sofisticado segmento do agronegócio. Diversos grupos de pesquisa têm se interessado pela prospecção, pesquisa e desenvolvimento de plantas medicinais. Uma equipe de pesquisadores da USP, em Ribeirão Preto, extraiu mais de 50 substâncias da planta de arnica. Duas delas, um antiinflamatório derivado do ácido quínico e um analgésico e anti térmico (cubebina), mostraram alta atividade em testes com camundongos, conforme publicação recente (Phytochemistry 55:7, 2000 - Analgesic activity of the lignans from Lychnophora ericoides). Outros antiinflamatórios, chamados goiasensolido e centraterina, mostraram grande atividade sobre as proteínas associadas ao processo inflamatório.
  A pesquisa laboratorial
O Prof. Norberto Lopes coordena a pesquisa, cujos estudos contemplaram a coleta de plantas nas Chapadas dos Parecis (MT), dos Veadeiros (GO) e Diamantina (BA) e nas serras do Cipó e da Canastra (MG). No laboratório, foram identificados os componentes presentes nas raízes, folhas ou flores. Os cientistas verificaram que as substâncias extraídas das folhas possuíam atividade antiinflamatória. Nas raízes concentra-se a atividade analgésica, embora também expressassem efeitos anti-inflamatórios. Substâncias isoladas das folhas surpreenderam os pesquisadores por sua potência medicamentosa. O Prof. Lopes identificou as substâncias goiasensolido e centraterina na pubescência das folhas (tricomas glandulares), classificando-as entre os mais potentes inibidores do mensageiro celular que deflagra o processo inflamatório. Essas duas substâncias atuam diretamente sobre o DNA, impedindo a formação das proteínas responsáveis pela inflamação.

 

O estudo agronômico
Não é fácil cultivar a arnica fora de seu habitat original. Os estudos demonstraram que ela exige uma simbiose do seu sistema radicular com fungos micorrízicos arbusculares, que são microrganismos da biota do solo. O Prof. Paron, da UFSCar debruçou-se sobre 21 espécies do fungo, pertencentes aos gêneros Glomus, Scutellospora, Entrophospora, Gigaspora e Acaulospora, e desenvolveu técnicas de inoculação do fungo, cultivado sobre sorgo plantado em vasos de areia esterilizada. Esse material é, posteriormente, misturado com o solo onde serão plantadas as mudas de arnica. A pesquisa foi aprofundada, para detectar os momentos em que a planta apresentava maior concentração das substâncias com efeito terapêutico. Os resultados mostraram que os períodos mais propícios são os que antecedem e sucedem a floração. Nessa época, a planta exuda uma substância com aparência oleosa, viscosa e pegajosa. Paralelamente, o grupo desenvolveu uma técnica para cultura de tecidos da arnica, permitindo obter um calo que produz o goiasensolido, facilitando o processo industrial sem a necessidade do cultivo da planta.
  Oportunidade
Apenas nos Estados Unidos, os fitoterápicos movimentam cerca de US$4 bilhões por ano. Mais de 60% das substâncias farmacologicamente ativas, atualmente vendidas em farmácias, são derivadas de plantas ou inspiradas em sua estrutura molecular. Laboratórios estrangeiros estão patenteando diversas substâncias extraídas de plantas nativas brasileiras. Recentemente houve o patenteamento de substâncias para o tratamento de úlcera, extraídas da espinheira-santa (Maytenus ilicifolia), por um laboratório do exterior. A equipe do Prof. Lopes patenteou o processo de produção de duas neolignanas da virola (Virola surinnamesis), que demonstraram atividade 50 vezes superior à violeta de genciana, na profilaxia da doença de Chagas. O aproveitamento de fitoterápicos é uma oportunidade que não pode ser desperdiçada pelo Brasil, merecendo a máxima atenção de autoridades, cientistas e empresários.

 

 

Fruticultura, um agronegócio emergente

Décio Luiz Gazzoni

Neste Brasil, abençoado por Deus e bonito por Natureza, em que se plantando tudo dá, as oportunidades estão sempre disponíveis à espera de empresários de visão que saibam aproveitá-las. E de lideranças políticas que percebam ser o agronegócio o grande motor do desenvolvimento nacional. O apoio a novas oportunidades no agronegócio, o fomento e o incentivo a essas oportunidades significa construir o futuro do Brasil. Entre as oportunidades do momento está a fruticultura, em especial a fruticultura tropical. O Brasil é o maior produtor mundial de frutas, entretanto sua participação no comércio internacional do setor ainda é incipiente. As ações mais recentes, capitaneadas tanto pelas entidades dos produtores quanto pelo Ministério da Agricultura, prometem mudar esse cenário, descortinando uma das oportunidades mais rentáveis do agronegócio brasileiro para o futuro próximo.   Normatização
O Ministério da Agricultura está modernizando a legislação brasileira do setor frutícola. A legislação aborda as questões da produção e da comercialização das frutas, sendo a uva e o abacaxi as primeiras a serem abrangidas pela legislação. O foco da legislação aponta para o estabelecimento de padrões, com ênfase para a certificação e a rastreabilidade. A Embrapa colabora nesse esforço, através do estabelecimento de sistemas de produção integrada, que buscam aplicar os princípios das Boas Práticas Agrícolas à produção de frutas, o que facilita sobremaneira o processo de rastreabilidade, conseqüentemente, a certificação. Governo e iniciativa privada estão unidos nesse esforço, por entenderem que o segredo da competitividade está no dueto tecnologia e sanidade, sem o que não há como conquistar espaço no mercado globalizado.
  Produção
Produzir frutas não é fácil. Produzir frutas de qualidade não é nada fácil. Produzir frutas atendendo todos os requisitos das Boas Práticas Agrícolas é um desafio que exige muito mais do que capacidade empreendedora. Exige dedicação, tecnologia, capacidade administrativa, assistência técnica, informação, entre outros requisitos. O produtor deverá diminuir as perdas e racionalizar o transporte. Felizmente, o Brasil dispõe de todas essas condições e permite que se produzam frutos de qualidade, atendendo a todos os quesitos para sua colocação no mercado. A fruticultura é um dos empreendimentos do agronegócio que possui maior retorno líquido por hectare e que também permite diversas etapas de agregação de valor, tanto ao nível da propriedade, mormente em empreendimentos associativos e comunitários. Entretanto, a etapa até a colheita é a mais fácil do processo, a maior atenção deve ser dada à fase de pós colheita, da porteira à prateleira do supermercado.

 

Comercialização
A globalização de mercados trouxe à tona a preocupação dos consumidores com a qualidade dos produtos agrícolas. Em especial, os consumidores querem a garantia da inocuidade dos produtos e a certeza de que qualquer não conformidade possa ser rastreada ao longo da cadeia produtiva, até a identificação do procedimento que a gerou. Enquanto os sistemas de produção integrada não se tornarem rotina no agro brasileiro, e não for estabelecida uma sistemática de certificação da produção, o fruticultor não conseguirá fazer valer toda a potencialidade do agronegócio da fruticultura. Com a certificação, será possível diferenciar o mercado por nichos, cada qual com suas peculiaridades.

 

 

 

  Qualidade
O Hortiqualidade é um programa que envolve diversas organizações e busca auxiliar o produtor a atender todos os quesitos de qualidade, para melhorar o seu processo de comercialização. Cada produtor deve se preparar para poder fornecer uma série de informações exigidas pelo programa, de maneira a estabelecer a origem e as características de seu produto, bem como demonstrar sua adequação aos padrões estabelecidos pelo programa. Através de um código de barras é possível acompanhar cada partida do produto, desde a propriedade até o consumidor final. Com esse sistema será possível modernizar o processo de comercialização, porém exigindo que todo o processo de produção tenha obedecido às recomendações de Boas Práticas Agrícolas. Com o Hortiqualidade, a comercialização ficará mais transparente, o produtor terá mais garantias de colocação de seu produto e poderá lançar mão de instrumentos sofisticados como a bolsa de mercadorias, melhorando o valor recebido pela sua produção.

Agricultura sem subsídios

Décio Luiz Gazzoni

A Nova Zelândia, à exemplo do Brasil, demonstra a norte-americanos e europeus, que o livre comércio é possível na prática, sem desperdiçar centenas de bilhões de dólares dos contribuintes para sustentar uma agricultura ineficiente. O país é francamente exportador, destino de 90% do produto do seu agronegócio. O setor soube inserir-se nas exigências comerciais do mercado globalizado, produzindo com competitividade e alta qualidade. A integração das cadeias e a especialização da produção têm chamado a atenção dos analistas que se debruçam sobre o seu setor primário.   A era dos subsídios
A Nova Zelândia compõe-se de duas ilhas principais, situadas no Pacífico Sul. Possui uma extensão de 268,670 km2, pouco maior que o Piauí. O relevo é montanhoso no interior e plano no litoral. Cerca de 9% de sua área é ocupada por cultivos anuais, 5% por cultivos permanentes, a pastagem ocupa 50% e o restante do território (28%) é coberto por florestas. A área irrigada é de 300.000 ha. Há 20 anos, 40% da renda dos ovinocultores provinha dos subsídios pois, até meados dos anos 80 o país subsidiava sua produção e exportação agrícola. A criação da União Européia, e a perda da condição de parceiro preferencial da Inglaterra, obrigaram o país a diversificar sua produção e seus mercados. O golpe de misericórdia foi deflagrado pela alta do petróleo, que tornou transparente um déficit governamental insuportável e obrigou a contenção de gastos públicos, entre eles os subsídios.
  Fim do sonho
Por ironia, foi o Partido Trabalhista, de tendência esquerdista e estatizante, que acabou com o suporte público de preços e os subsídios agrícolas. O contexto era particularmente desfavorável, caracterizado por altas taxas de juros. A taxa de câmbio, calibrada para atrair recursos externos, era desfavorável aos produtores, à época em que se acentuava o movimento de queda de preços das comodities, motivado pelo elevado estoque europeu, artificialmente sustentado pelos subsídios. Projeções da época estimavam que 10% dos proprietários rurais abandonariam a atividade, após a retirada dos subsídios. Passada a tempestade, menos de 1% efetivamente deixou o campo, o que é um número aceitável até em condições normais. O segredo esteve no apoio à transição, posto que o Governo retirou os subsídios, porém perdoou parte das dívidas dos produtores, refinanciando outra parcela.

 

Os ajustes
A ovinocultura concentrava o maior volume de subsídios na forma de insumos e adicional de preços, vinculado ao número de cabeças do rebanho. Em conseqüência, o país atingiu um recorde de 40 milhões de cabeças prontas para o abate, sem demanda equivalente. Desde então, houve um ajuste no rebanho, reduzido em quase 40%, sem que a oferta de carne fosse afetada, pois a produtividade cresceu exponencialmente. A pecuária leiteira também sofria as mazelas da ineficiência, porém o fim do subsídio tornou o setor altamente rentável. O produtor é remunerado pelos teores de proteína e de gordura do leite, obrigando-o a conciliar alta produtividade, baixos custos e qualidade esmerada.
  Competitividade
A OCDE estima que a Nova Zelândia invista apenas 1% de seu orçamento no apoio ao agronegócio, contra 4% na Austrália, 35% na UE, 59% no Japão, 21% nos EUA e 17% no Canadá. O agronegócio neozelandês demonstrou um vigor surpreendente. O setor detinha 14% do PIB, que evoluiu para 17% após 15 anos sem subsídios. As lideranças setoriais são unânimes em afirmar que a retirada de subsídios foi um fator preponderante para a modernização do seu agronegócio. O agricultor foi compelido a ser racional, desenvolver habilidade empresarial e focar seu negócio no consumidor de seus produtos. As taxas de juros praticadas para o setor são as mesmas de outros setores da economia (7% a. a.). O fim dos subsídios fez surgir novos setores, como a vinicultura e a criação de cervos, expandir a horticultura e a silvicultura e desenvolver outras formas de renda, como o turismo rural. Na última década e meia a agricultura da Nova Zelândia vem apresentando um crescimento geométrico da produtividade de quase 4% ao ano, contrastando com o crescimento geral da economia, que beira a 1%. O destaque do agronegócio é a cadeia do leite, responsável por exportações de US$3,5 bilhões em 2001. Neste ano, as exportações agrícolas, de quase 8 bilhões de dólares, representaram mais da metade das exportações do país. Esperemos que os próximos exemplos venham do Hemisfério Norte.

A medicina indígena

Décio Luiz Gazzoni

Os índios brasileiros dispõem de um invejável conhecimento sobre plantas medicinais e práticas empíricas de prevenção e terapêutica de enfermidades. As multinacionais do ramo, sempre antenadas para boas oportunidades, têm buscado nas matas e nas tribos a informação para industrializar a cultura indígena. A pesquisa nacional ainda não avançou o suficiente neste campo, que deveria evitar a apropriação indébita do conhecimento secular, estabelecendo uma legítima parceria em que a sociedade possa beneficiar-se e os índios serem recompensados pela propriedade intelectual. O Dr. Elisaldo Carlini, diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) da UNIFESP, desenvolve pesquisas pioneiras sobre a farmacopéia dos índios da tribo Krahô.

 

  Prospecção
Uma estudante do Dr. Carlini, financiada pela FAPESP, investiu dois anos mapeando as plantas e receitas prescritas por sete sacerdotes (ou xamãs, curandeiros encarregados de cuidar dos doentes e promover rituais de cura). Ela conviveu sete meses em uma reserva Krahô no norte do Tocantins. O Instituto de Botânica do Estado de São Paulo identificou 164 espécies nativas usadas com fins medicinais, como parte de seu estudo de doutorado. Destas, 138 atuam no sistema nervoso central, podendo curar patologias ou promover alterações comportamentais, afetando o humor ou a cognição. No folclore indígena algumas são indicadas para namorar, casar ou promover a separação. Outras são prescritas para os esportistas, aumentando a capacidade orgânica para transportar toras de árvores ou a resistência física nas maratonas e corridas. Também foram identificadas plantas com propriedades alucinógenas.

 

 

  Farmacopéia
Existem mais de 50 indicações de uso, totalizando 298 receitas envolvendo as 138 plantas pesquisadas. O ahtu tanto é usado para solver questiúnculas amorosas como pode ser um fortificante, dependendo do preparo da receita. A estudante encontrou 48 receitas de analgésicos, baseadas em 40 diferentes plantas. Este arsenal fitoterápico representa uma oportunidade ímpar de desenvolvimento de novos remédios que atuam no sistema nervoso central. A maioria das espécies não possui antecedentes de estudo científico e somente 11 plantas haviam merecido atenção anterior. Nestes casos, sempre houve coincidência entre a prescrição efetuada pelos xamãs e os resultados obtidos pelos cientistas. Tanto o nome científico das plantas como sua indicação terapêutica é um segredo mantido pela equipe, para evitar a biopirataria e a espionagem industrial. "Os direitos dos índios serão respeitados", assevera o Dr. Carlini. "Já firmamos um pré-acordo com os Krahô, que receberão sua parte se desenvolvermos remédios comerciais a partir de seus conhecimentos."

 

Uso empírico
As receitas dos Krahô compõem-se de chás, com uma ou várias partes das plantas, inteiras ou raladas. Os xamãs aplicam partes de vegetais sobre o corpo dos pacientes, ou as utilizam para o preparo de cigarros, banhos ou inalações. Folhas e raízes de algumas plantas também podem ser ingeridas in natura. Durante a "consulta" os xamãs fumam cachimbos de tabaco, maconha ou outros alucinógenos, soprando a fumaça sobre os doentes, à guiza de diagnóstico, para "melhor visualização da patologia". A fumaça também pode ser focada em um ponto, para expelir a enfermidade. Esse ritual noturno é seguido pela prescrição das receitas com fitoterápicos, efetuado no dia posterior. O "acompanhamento clínico" do paciente ocorre com visitas à sua morada, podendo haver alteração da prescrição caso o paciente não reaja adequadamente.
  Pesquisa e desenvolvimento
Como o número de plantas é muito grande, a pesquisa será concentrada em cinco linhas: analgésicos; tratamento da obesidade; hipnóticos e ansiolíticos; substâncias que agem na memória e na aprendizagem; e condicionantes físicos. Os pesquisadores selecionarão duas ou três plantas em cada grande linha, permanecendo o restante do material como estoque estratégico para o futuro. A pesquisa estabelecerá o uso terapêutico de ingredientes ativos extraídos das plantas e também a sua toxicidade. Do ponto de vista agronômico, será necessário desenvolver sistemas de produção das novas espécies, adaptando-as ao cultivo intensivo. A partir destes estudos será possível abrir novas oportunidades, incluindo agronegócios, ampliando o leque de fitoterápicos disponíveis para a população.

Estresses ambientais e qualidade dos alimentos

Décio Luiz Gazzoni

É de domínio público que carne proveniente de animais submetidos a sofrimento e estresse contém toxinas e outras substâncias, que diminuem a sua qualidade alimentar, ou que provocam efeitos colaterais em quem a ingere. Mas, você já pensou que alimentos produzidos por plantas, submetidas a estresses, também podem ter sua qualidade depreciada? Não? Bem, é o que pretendemos demonstrar com esse artigo, que busca mostrar a similaridade dos mecanismos de defesa das plantas a diferentes estresses e, também, como as substâncias produzidas pelas plantas estressadas podem afetar a qualidade do alimento.   As plantas superiores desenvolveram um sofisticado sistema de defesa para sobreviver aos assédios das ameaças bióticas (pragas), das adversidades climáticas e de outras condições ambientais desfavoráveis (estresses abióticos). Em recente visita à Estação Experimental de Rothamsted (Inglaterra) pudemos observar o denodo dos pesquisadores dedicados a desvendar a base molecular dos mecanismos de defesa das plantas. Conforme os estudos prosseguem, conforma-se um poderoso banco de genes com aplicação no melhoramento de plantas, objetivando a convivência com o estresse e a melhoria da qualidade dos alimentos.   A utilização disseminada desse banco permitirá, no ambiente micro, sofisticar as defesas vegetais contra estresses externos. No plano macro, constituir-se-á em poderosa ferramenta para estabilizar e incrementar de forma sustentada a oferta global de alimentos, fibras e energia. Entretanto, conforme a conversa com os cientistas de Rothamsted avançava, percebi quanto o conhecimento acumulado nessa área permitirá entender a relação entre estresses ambientais, a composição química dos alimentos e sua qualidade nutricional.

Reatores vivos

Os organismos vivos podem ser modelados, de forma extremamente simplista e didática, como um conjunto de sistemas bioquímicos, baseados em reações de oxidação e redução (sistema redox). Nesses sistemas, os processos catabólicos (por exemplo, decomposição de proteínas), com predominância de reações de oxidação, extraem energia. Já os processos anabólicos, baseados em reações de redução, assimilam energia.

 

 

 

  Uma característica importante das plantas é a sua capacidade de controlar plenamente as reações de oxidação e de redução, sob condições normais. Ou seja, se há excesso de reações de oxidação, a planta produz ou mobiliza substâncias redutoras, e vice-versa.

 

 

 

 

 

  Entretanto, sob o efeito de mudanças ambientais muito acentuadas, as plantas precisam manter os fluxos metabólicos – a base da vida - enquanto evitam reações de oxidação descontroladas. Ato contínuo, são induzidas mudanças na expressão dos genes, a fim de restaurar a homeostase das reações de redução e oxidação. Se o repertório de respostas oferecido pelo conjunto de genes da planta é insuficiente, ou se não for apropriado, então o metabolismo primário é prejudicado. Nesse caso, o estresse oxidativo se instala, acentuando-se progressivamente e, in extremis, redundando na morte de células e na antecipação da senescência da planta.

O sistema redox

Antes de prosseguir, é necessário entender o termo "transdutor", que a biologia importou da física. Ele refere-se à habilidade de transformar um tipo de sinal em outro tipo ou à capacidade de transformar uma forma de energia em outra. Através de transdutores é possível controlar um processo biológico ou um fenômeno físico. Quando ocorre uma "transdução" significa que um sinal está sendo emitido para deflagrar e regular um processo biológico. Por exemplo, as substâncias que conferem gosto ou odor a um alimento são transdutores pois, a partir de um sinal químico (cheiro, aroma, sabor), deflagram uma série de reações orgânicas, ativando a percepção sensorial (gosto, olfato).

 

 

 

 

 

Uma das respostas mais precoces das plantas ao ataque de pragas, a secas, a temperaturas extremas ou a outros choques de natureza química ou física, é a acumulação de formas ativas de oxigênio, com alta capacidade de ligar-se a outras substâncias. Essa forma é chamada de oxigênio ativo e tem como principais representantes os superóxidos, os radicais hidroxilas e o peróxido de hidrogênio (H2O2, a popular água oxigenada).

A sigla em inglês do oxigênio ativo é AOS (active oxygen species). O aumento do potencial oxidativo, que resulta da ação dos estresses externos, é um fenômeno generalizado no reino vegetal e tem sido observado nas plantas expostas à maioria, senão a todos os tipos de estresses.

 

 

 

 

 

Os compostos ativos de oxigênios são componentes essenciais do equilíbrio das reações redox, no interior das células. Estas reações iniciam com a transdução de sinais e prosseguem com a expressão dos genes, a síntese das proteínas, a substituição de proteínas inativadas por novas moléculas da mesma substância, além de outras reações que regulam o metabolismo das plantas.

O acúmulo de compostos AOS na planta atua como um poderoso alarme, que deflagra respostas defensivas, as quais dispõem de prioridade sobre outros processos metabólicos. Dependendo do grau de estresse oxidativo sofrido pela planta, caminhos bioquímicos de transdução de sinais são ativados, podendo conduzir tanto à adaptação ao estresse quanto à morte de células – uma forma de defesa das plantas. Assim, as respostas das plantas ao estresse são dirigidas para adaptação à nova situação e para reparar danos sofridos, tentando retornar ao equilíbrio pré-estresse.

Oxidantes

Apesar da disponibilidade de muitas informações sobre o papel dos AOS, particularmente de H2O2 como reguladores da expressão dos genes, pouco é conhecido sobre os mecanismos (vias ou caminhos) que mediam a resposta das plantas aos estresses. Ou seja, não está perfeitamente claro para os cientistas como a mesma molécula de H2O2 pode deflagrar respostas tão diversas quanto a defesa contra pragas ou a proteção contra estresses térmicos.

 

 

 

 

 

As rotas bioquímicas dos ácidos salicílico e jasmônico e do etileno já são conhecidas e estão ligadas à resposta das plantas ao ataque de pragas (estresses bióticos). Os cientistas investem agora no entendimento de como os AOS ativam os genes que compõem a retaguarda de defesa das plantas contra os estresses em geral, bióticos ou abióticos. Vamos aceitar o conceito de que os AOS são substâncias que atuam como transdutores de sinais, em todos as respostas a estresses. Se partirmos dessa premissa, entenderemos porque os cientistas devem aprofundar ao máximo o estudo da interação entre genoma e ambiente, a fim de identificar promotores e genes que respondam ao estresse. Ao contrário dos animais e leveduras, onde o assunto foi investigado, esta informação não está disponível para as plantas.

  Os cientistas estão esmiuçando as vias pelas quais trafegam os sinais moleculares e as vias metabólicas envolvidas na reação da planta ao estresse. Para entender o mecanismo, os pesquisadores estão estudando grupos de genes que respondem tanto à aplicação de AOS quanto à seca. Outro estudo envolve plantas transgênicas e mutantes, com deficiências já identificadas no metabolismo de defesa das plantas. Assim, progressivamente, os cientistas vão entendendo como cada gene é acionado e qual o mecanismo de transdução para ativá-los.

 

 

Antioxidantes

Um estresse externo, seja ele biótico ou abiótico, deflagra um estresse interno nas células, denominado "estresse oxidativo". A planta reage mobilizando compostos antioxidantes, buscando o equilíbrio do sistema redox. De forma reducionista, essa é a lógica do sistema de defesa antiestresse das plantas.   A homeostase dos AOS nos tecidos das plantas é determinada pela suas taxas de produção e de destruição. As células das plantas têm uma bateria de defesas para combater os AOS, consistindo de enzimas e antioxidantes de baixo peso molecular, em especial ascorbatos e glutationa. Na ausência de estresses acentuados, esses antioxidantes são fartamente encontrados em formas reduzidas, ao invés de se apresentarem nas formas oxidadas – ou seja, um exército de prontidão, acionado quando a ameaça potencial se materializa.   Entre todas as substâncias envolvidas, é importante ressaltar a presença dos antioxidantes de baixo peso molecular, na transdução de sinais. Ocorre que, quando ingeridas como parte da dieta, essas substâncias também desempenham o papel de antioxidantes no organismo humano, reduzindo o risco de tumores malignos e acidentes cardíacos.

Mecanismos moleculares

Um incremento na substituição de moléculas de proteína é a principal decorrência do restabelecimento da homeostase. Como numa batalha campal em que, apesar de derrotar o inimigo, mesmo o exército vencedor tem seus feridos, as proteínas antioxidantes são "feridas" na batalha. Elas são inativadas ou sofrem modificações que as tornam impróprias para as funções que desempenham. As proteínas modificadas pelas interações com AOS são mais suscetíveis à degradação. O Rubisco é a proteína mais abundante nas folhas (30 a 50% da proteína solúvel das folhas), estando envolvida com a assimilação de CO2. Os cientistas estudaram o Rubisco em condições normais e de seca. O estresse hídrico tanto pode causar a sua inativação reversível quanto irreversível.

  Após uma inativação irreversível, a proteína tem que ser degradada e substituída por novas moléculas, para restabelecer a capacidade fotossintética das plantas. Isso equivale à reconstrução das cidades, uma vez findada a batalha entre os exércitos. Porém, mesmo reconstruída, ocorrem modificações nas ruas, nas edificações e na arborização da cidade. Bingo: No caso da planta, após uma "batalha" contra o estresse, há uma modificação na sua composição química, o que pode vir a afetar a qualidade nutricional do alimento produzido!

 

 

 

  Inibidores naturais, que possuem forte capacidade de ligação, e que também regulam a atividade catalítica do Rubisco, podem ser acumulados durante o estresse. Em laboratório, foi demonstrado que esses inibidores conferem proteção contra a degradação e o dano oxidativo às proteínas. Caso esse fenômeno seja comprovado em condições de campo, os pesquisadores poderão acentuar essa característica nas plantas, mitigando o impacto dos estresses sobre o metabolismo das plantas.

 

 

 

Qualidade dos alimentos

Mas, afinal, além dos danos visíveis, já fartamente conhecidos, dos ataques de pragas ou da seca sobre as plantas produtoras de alimentos, há algo mais que possa afetar a sua qualidade?

Os cientistas estão descobrindo que a resposta é positiva. A composição química do alimento depende, obviamente, da carga genética da planta. Porém, estresses extremos possuem a capacidade de interagir com o código genético do vegetal, alterando a composição final dos produtos vegetais. Os cientistas estão estudando a manipulação das enzimas envolvidas no metabolismo antioxidante e das proteínas que compõem o mecanismo antiestresse, para entender a extensão dessas alterações.

As plantas sintetizam uma variedade de compostos como resposta ao estresse ambiental. Muitos desses compostos participam na detoxificação do AOS nas plantas – e também podem atuar como antioxidantes no organismo humano, quando consumidos como parte da dieta

 

. Um dos termos propostos para essas substâncias é fitonutrientes, embora a expressão nutracêuticos tenha maior aceitação. Uma vez ingeridas, elas têm papéis definitivamente elucidados (caso das vitaminas C e E) ou ainda necessitando de mais estudos (flavonóides ou xantofilas). O importante é que a composição e o teor de antioxidantes presente nos vegetais está relacionado com as condições ambientais durante o cultivo da planta.

Sabe-se que a seca e temperaturas extremas enquadram-se entre as principais limitações para a produção e qualidade dos produtos vegetais. Além de permitir a convivência das plantas com os estresses ambientais, a ciência do futuro buscará não apenas identificar a influência do ambiente no valor nutricional dos alimentos produzidos pelas plantas, como pesquisará os meios através dos quais é possível melhorar a qualidade nutricional dos mesmos.

 

Portanto, quando a sociedade explicita suas exigências cada vez mais rígidas em relação à qualidade dos alimentos, é importante aprofundar o conhecimento do impacto do ambiente sobre a composição química e a qualidade nutricional dos mesmos, para atender a demanda por alimentos de qualidade superior. Ou seja, a visão de futuro do Fome Zero, é Qualidade (e Saúde) Dez!

Assim, quando a EMBRAPA, ou outro órgão de pesquisa, lançar uma nova cultivar, resistente a pragas ou à seca, ou quando gerar uma tecnologia que permita atenuar o impacto dos estresses bióticos e abióticos, o alimento produzido utilizando essas tecnologias, provavelmente, terá maior valor nutricional e será mais saudável. E o produtor que utilizar essas tecnologias, terá um diferencial de mercado representado pela maior qualidade fisiológica do alimento e pela melhoria de suas propriedades nutracêuticas.

Caipira sô? Não, agricultor multifuncional!

Décio Luiz Gazzoni

A Serra Gaúcha virou sinônimo de qualidade de vida. Não é uma avaliação empírica, porém uma constatação amparada nos indicadores internacionais de qualidade de vida, adotados pela ONU. No início de 2002, a cidade de Feliz, no sopé da Serra, foi decantada em prosa e verso como a cidade com melhor qualidade de vida do Brasil. O nome da cidade já era um prenúncio de seu destino.   Mas, foi sempre assim? Não, e quero dar o testemunho de quem nasceu e cresceu em Bento Gonçalves, cidade encravada na região fisiográfica da Encosta Superior do Nordeste, nome oficial da Serra Gaúcha. A colonização da região pelos imigrantes europeus, em especial italianos e alemães, ocorreu na segunda metade do século XIX. Lembro das tertúlias em que meus avós teatralizavam as peripécias dos migrantes recém-chegados da Itália, abandonando seu país por absoluta falta de perspectivas. Aqui aportavam sem conhecer a língua, com a roupa do corpo e mais duas mudas na mala, "dopo trenta e sei giorni di machina a vapore". Abundavam apenas qualidades como esperança, persistência, coragem e visão de negócio. Auxiliava-os a tradição de muitas gerações sofridas, a cultura milenar da Europa e o espírito empreendedor.

Migrantes paupérrimos

Em chegando, receberam algumas léguas de terra precariamente demarcadas, invariavelmente uma encosta de morro, onde algum solo poderia ser vislumbrado entre o pedregulho. Solidariedade e apoio mútuo substituíam ferramentas, sementes e fertilizantes. Agrotóxicos sequer existiam.

Minhas lembranças remontam aos anos 50, quando ainda persistia a pobreza. Uma pobreza digna e democrática. Fortunas eram raras, contavam-se-nas nos dedos. As famílias mais abastadas eram admiradas pelo suor desprendido e por sua capacidade empresarial. Fome zero, assim como miséria ou analfabetismo zero! Todos os habitantes tinham uma fonte de renda e uma casa para morar. A força vinha do que hoje se emoldura como agricultura multifuncional, o pano de fundo do Novo Rural brasileiro.

 

 

  Pelo agricultor da Serra Gaúcha nunca passou a idéia de perpetuar a pobreza. Contrariamente, sempre houve uma confiança cega em dias melhores, no progresso continuado. O segredo estava no entendimento da diversificação de atividades (diversificando riscos, ameaças e oportunidades), no engajamento comunitário, na agregação de valor. Historicamente, o agricultor típico da Serra Gaúcha não vende trigo ou milho, ele leva ao consumidor pães, bolos, tortas, brioches, bolachas e biscoitos, devidamente recheados e embalados, etiquetados e diferenciados. Pode até vender a uva (selecionada, embalada e etiquetada), mas seu negócio é vender o vinho, a grappa, o brandy ou o vinagre, distanciando-se da álea mercadológica.

Não há interesse em vender cana ou pêssego. É mais importante vender o açúcar mascavo, o mandolate, o pé-de-moleque, os sucos.

 

 

Quem compra pão e vinho, também adquire queijos, coalhada, salame, copa e aproveita para comprar uma espiga de milho verde, cozida na água ou assada no fogo - o freguês é quem manda. Fiquemos com esse exemplo: uma espiga vendida a R$1,00 significa que, hipoteticamente, um hectare rende R$100.000,00, em milho assado ou cozido, vendido na barraquinha do produtor. O mesmo hectare produz 50 sacos de milho, que valem R$1.250,00. A diferença é a decantada agregação de valor!

No rastro do agricultor multifuncional surgiram cidades pujantes como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Gramado e outras, onde é muito difícil separar o rural do urbano, se forem usados conceitos rígidos, que podem ser válidos para outras regiões. A mesa variada, barata e farta é hoje um dos símbolos da região, substituindo a pugna pelos ababalhos, marca da sobrevivência dos duros tempos do início da colonização.

O Brasil mutante

Com graus diferenciados, a revolução silenciosa, que transformou a Serra Gaúcha em um lídimo enclave europeu no Brasil, multiplicou-se pelo país, aproveitando as potencialidades locais e abrindo novos mercados, infensa à intercadência das políticas governamentais para o setor. Quando se projeta o futuro próximo do mundo rural, é possível diferenciar algumas linhas mestras, por vezes entrelaçadas. Sempre haverá uma agricultura empresarialmente forte, pautada em comodities, cujo diferencial será a economia de escala.    Surge no horizonte uma oportunidade ímpar, derivada da anterior, porém lastreada na produção de bio-energia, centrada em produtos com alto teor de carboidratos, oleaginosas e no reflorestamento. A agricultura familiar, paradigma da Serra Gaúcha, ganha força, espaço e se diversifica, conquistando não apenas o mercado interno, mas ambicionando inserir-se qual cunha no mercado globalizado. Além de uma série de outras atividades que ocorrem no espaço geográfico definido como rural que, muitas vezes, se distanciam da produção agropecuária, como a conhecemos. Vejamos alguns exemplos:

Agroindústria
Agregar valor em produtos de grande escala de produção é o objetivo permanente de todos os países, por ser o caminho mais curto para a geração de emprego e renda. Essa disputa vem sendo vencida pelos países centrais, obviamente perenizando a pobreza nos países periféricos. A válvula de escape está na pequena produção rural, especialmente a produção familiar, muitas vezes artesanal, que se viabiliza na agregação de valor, posto não possuir escala produtiva. O processamento de frutas, a produção de sucos, embutidos, derivados lácteos, carnes processadas, bebidas fermentadas e destiladas são bons exemplos de atividades agroindustriais. Sai de cena a cana e abre-se o palco para a abacaximbirra, a ximbica, a ximbira e assemelhados, de muito maior valor.

 

 

  Criações exóticas
A avestruz talvez seja o exemplo mais conhecido, por ser exótica, de introdução recente e de rápida expansão, gerando muito interesse no meio rural. Além da carne apreciada, que possui elevado valor intrínseco, da avestruz aproveitam-se as penas e o couro, expandindo o leque de negócios. Compõem esse segmento outras aves, entre elas o faisão, codornas e pássaros importados, como canários. Até a galinha caipira está sendo ressuscitada, para atender a um segmento de consumidores. As rãs estão deixando de ser um melancólico coaxar noturno para transmutar-se em um grande negócio, no qual o Brasil desponta como o maior produtor mundial. O produtor rural também se dedica à criação de jacarés, capivaras, camarões, peixes, javalis, escargots. Esse segmento de carnes especiais possui um valor intrínseco elevado e serve de base para uma cadeia produtiva que vai desde o fornecimento de ovos, passa por empresas de melhoramento genético de rãs, alcançando os frigoríficos que processam as carnes.

Caça e pesca
Pescador que apenas garganteia, mas no fundo não é de nada, diz que não pesca em poça d’água. É a forma de não expor a sua falta de habilidade e pendor para a pesca aos outros adeptos do hobby, que borbotam aos milhões no meio urbano, atraído pela febre de pesque-e-pague, que vicejam na periferia das cidades e no meio rural. Atividade típica de quem dispõe de pouco espaço para buscar um empreendimento sustentável, o pesque-e-pague alimenta toda uma cadeia de interesses negociais, desde os materiais e insumos para pesca, os alevinos, a ração até o processamento do peixe. Além do lazer da fisga, a atividade engloba bar, restaurante, parque infantil, áreas para prática de esportes e outras atividades de interesse de seu público. Embora em menor escala, porém dentro dos mesmos propósitos, surgem as fazendas de caça, que criam animais para atrair caçadores provenientes do meio urbano.
  Cultivos diferenciados
Agricultor multifuncional não entrega alface e repolho para o atravessador. Se ainda não o é, almeja ser um produtor orgânico. No pós-colheita, efetua um pré-processamento, seleção e limpeza de tomates, pepinos e rabanetes. Cogumelos são um "must" e sempre encontram consumidores. O sistema de produção, o processamento e a embalagem multiplicam a receita do produtor. As frutas atendem as exigências de qualidade do mercado, as flores e outras plantas ornamentais, os temperos, aromáticos, fitoterápicos e outras potencialidades da nossa biodiversidade brotam da cornucópia do empresário do novo rural brasileiro. Mesmo que esse empresário se valha apenas do tempo parcial da mulher e três filhos, além de escassos empregados fixos.

 

Festa, que ninguém é de ferro!
Aqui vale a criatividade. Vale quadrilha de São João em plena fazenda, complexos hípicos bem organizados, festa de rodeio, leilões, exposições agropecuárias, shows folclóricos, bailões e bailinhos. Vale a chácara para o churrasco de final de semana, para o futebol, a festa de aniversário do caçula ou de casamento do primogênito. O lazer rural, ao contrário do que possa ser imaginado, vive do público urbano, seu maior freqüentador. O movimento financeiro estimado dessas atividades ultrapassa a R$ 20 bilhões, um agregado que rivaliza com a produção brasileira de soja.
  Turismo rural
Na mesma linha do lazer, começam a ganhar espaço os hotéis fazendas e as fazendas hotéis. Espaços sofisticados ou espaços com a rusticidade e a simplicidade da roça. Acordar às 4 h da matina para tentar, desajeitadamente, ordenhar a teta da vaca. Caminhar pelos campos, para aguçar os sentidos. Sentir o cheiro de bosta, observar o serpenteio do riacho, ouvir o arrulho de ximangos, guarubas, acauãs, açores, alcíones, urutaus, alvéloas e taralhões, aves virtuais para reclusos em apartamentos, acostumados a pombinhas, pardais e andorinhas ou aos abutres do lixão.
  O novo rural
Impossível esgotar, neste espaço, a descrição dessa revolução fascinante da introversão do Brasil em sua vocação maior, da busca de oportunidades na área rural, quando elas escasseiam no meio urbano. A dinâmica do novo rural brasileiro possui o condão de resgatar a dignidade de milhões de famílias do interior do Brasil, permitindo reacender a chama da esperança em dias melhores. O Brasil urbano, mais do que admirar, precisa mirrar-se no exemplo pujante do novo Brasil rural.

 

 

BOX

O Engenheiro Agrônomo José Graziano da Silva, professor da Unicamp, tem se dedicado a pesquisar o Novo Rural Brasileiro, sendo reconhecido como um emérito estudioso dos meandros do perfil moderno das atividades que ocorrem no meio rural brasileiro. Seu trabalho está consolidado no projeto Rurbano, que pode ser visitado no endereço www.eco.unicamp.br/projetos/rurbano/rurbanw.html. Quem estiver interessado em conhecer o assunto em profundidade deve buscar as obras do Professor Graziano para maiores informações. Seguem duas recomendações aos interessados:

O Novo Rural Brasileiro: uma análise nacional e regional.
Autores: Dr. Clayton Campanhola (Embrapa Meio Ambiente) e Prof. José Graziano da Silva.

Os resultados obtidos nas Fases I e II do Projeto Rurbano mostram que o meio rural do nosso país, à semelhança do que ocorre em outras partes do mundo desenvolvido, apresenta uma crescente diversificação de atividades agrícolas e não-agrícolas. Mais ainda: enquanto as atividades agrícolas vêm reduzindo sistematicamente o nível de ocupação e gerando um volume de renda cada vez menor, as atividades não-agrícolas no meio rural brasileiro e paulista vêm aumentando o número de pessoas ocupadas e propiciando uma remuneração significativamente maior do que as obtidas nas atividades rurais ligadas à agropecuária tradicional. Há um conjunto de atividades não-agrícolas - como a prestação de serviços (pessoais, de lazer ou auxiliares das atividades econômicas), o comércio e a indústria - que responde cada vez mais pela nova dinâmica populacional do meio rural brasileiro. Por tudo isso, já não se pode caracterizar mais o meio rural brasileiro como estritamente agrícola.

Novo Rural – uma abordagem ilustrada
Autores: Mauro Eduardo Del Grossi (IAPAR) e Prof. José Graziano da Silva

São dois volumes que procuram traçar uma radiografia do novo rural brasileiro. O primeiro volume trata da modernização da agropecuária, dedica um capítulo especial à terceirização no meio rural e descreve as novas atividades que ocorrem na área rural. O segundo volume efetua diversas análises, baseadas em estatísticas e estudos, incluindo a ocupação das pessoas e as conseqüências nas famílias do meio rural, as dinâmicas geradoras do novo rural e as políticas para o setor.

 

Dubitando ad veritatem pervenimus

Décio Luiz Gazzoni

Marco Túlio Cícero (106 a 43 a. C.) foi um dos maiores oradores romanos, assaz conhecido como escritor, professor, advogado, filósofo e pretor. Sua teoria cartesiana da dúvida assevera que não se deve aceitar, de imediato, uma nova teoria científica, imortalizando a frase-título da coluna. Há um lustro a Justiça, através de medida liminar, suspendeu a produção e o comércio de OGMs no Brasil. Durante essa moratória, a sociedade vem exercitando Cícero, discutindo transgenia e clonagem, sem obter um consenso. Ocorre que a ciência do III Milênio tem seu próprio ritmo e exige decisões rápidas, para não sermos surpreendidos discutindo a pré-história tecnológica.

 

 

  Vacas transgênicas e clonadas
Para ilustrar esse descompasso, analisemos um estudo desenvolvido na Nova Zelândia. Usando a bactéria Escherichia coli como vetor, foram introduzidos genes em células de gado vacum (Bos taurus), além de um gene para resistência a neomicina (antibiótico), o que possibilita selecionar as células transgênicas. Os cientistas inseriram uma cópia adicional do gene que produz caseína, aumentando o conteúdo de proteína do leite; "silenciaram" o gene da B-lactoglobulina, responsável pela alergia humana ao leite de vaca; e inseriram um gene humano, responsável pela síntese de mielina (capa dos nervos). A mielina é extraída do leite, purificada e utilizada para tratar a esclerose múltipla humana. As vacas com essas características foram clonadas para avaliação.
  Transferência de embriões
O show high-tech continua. As células transgênicas foram injetadas em óvulos de vacas, de onde foi retirado o núcleo, à semelhança do processo de criação de Dolly, a ovelha. Os embriões foram cultivados por uma semana no laboratório, antes de serem transferidos para "mães de aluguel". Essas vacas foram acompanhadas por ultra-som, durante a prenhez, para verificar o desenvolvimento correto do embrião. Por segurança, o parto dos bezerros transgênicos foi efetuado por cesariana, uma semana antes da data prevista para o parto normal.

 

 

Lactação
Aos 6-9 meses de idade (comparados com dois anos em vacas normais), a lactação foi induzida nas vacas transgênicas, usando hormônios (estrogênio e progesterona). O leite foi analisado em laboratório, para confirmar a expressão dos caracteres introduzidos por biotecnologia. As vacas com melhores características foram separadas para reprodução. Seus óvulos foram retirados, cultivados em laboratório até a maturação e fertilizados com sêmen de touros previamente selecionados (que, no futuro, também serão transgênicos, com as mesas características genéticas das vacas). Quando os embriões fêmeas atingiram o estágio de 32 células, foram transplantados para vacas (mães de aluguel). Em rebanhos de 30 vacas, descendentes de cada animal transgênico original, estão sendo avaliadas as características dos animais e realizados todos os estudos de biossegurança

 

 

Vantagens
O leite das vacas transgênicas possui um teor muito mais elevado de caseína, utilizada na produção de queijo, de alta pureza e baixo custo. Além do ganho econômico e de qualidade, os pesquisadores rejubilam-se com a produção de leite que pode ser consumido por seres humanos alérgicos à lactose. Entrementes, o maior orgulho dessa equipe, é a produção de medicamento para tratar a esclerose múltipla humana. Além da maior facilidade e do menor custo, a extração de mielina do leite evita os problemas de contaminação quando é utilizado o sangue (hepatite, AIDS, BSE, etc.).

 

 

 

 

  Urgência
Pesquisas como essas já deixaram, há muito tempo, a ficção científica no passado, estão se tornando realidade e se integrando ao sistema produtivo e às comunidades onde são utilizadas. Sem qualquer conotação de parti pris, urge que o Brasil saia da letargia da moratória a que se impôs desde 1998 e decida: ou bem adere à corrente científica da biotecnologia ou, opcionalmente, desenvolve técnicas alternativas que permitam atingir os mesmos objetivos estratégicos. Só não podemos permanecer "deitado eternamente em berço esplêndido", enquanto o restante do mundo ganha em competitividade, rompendo a fronteira do conhecimento científico e dominando o mercado. O avanço tecnológico é o responsável por menor custo, maior qualidade e por novas oportunidades do agronegócio e não podemos, simplesmente, deixar o cavalo passar encilhado, perdendo oportunidades de desenvolvimento, emprego e renda.

A fome no mundo e os países ricos

Décio Luiz Gazzoni

Durante nasceu em Firenze, em 23/05/1265. Apelidado de Dante, tornou-se um dos maiores poetas de todos os tempos, tendo testemunhado o fim da Idade Média, vivido no século de cruzadas, das viagens de Marco Polo, da Inquisição em Castela, da agonia do feudalismo na Itália. Florença era rica, seus mercadores famosos, os banqueiros tinham poder por toda a Europa, sua vida cultural era intensa. Os contrastes apareciam nas ruas estreitas, com esgotos a céu aberto e o desfile de sedas e jóias compradas com o ouro das mercadorias de todo o mundo conhecido. Logo viria o Renascimento e as mudanças de valores. Exilado e incompreendido, o poeta morreu em Ravenna, em 1321. A injustiça inspirou Dante Alighieri a escrever a Divina Comédia, onde colocou uma inscrição na porta do Inferno que dizia "Lasciate ogni speranza, voi che'ntrate" (Deixai toda a esperança, vós que entrais).   Guerra contra a fome
Em 1997 a ONU, através da FAO, convocou todos os países membros a aderirem a um programa para reduzir em 50% a fome do mundo, em 25 anos. Em 2002 os mesmos países reuniram-se para avaliar o que havia sido feito. Descobriu-se que a fome havia aumentado! Salvo honrosas exceções, Brasil entre elas, as metas não haviam sido cumpridas. No Fórum Econômico Mundial de Davos, o presidente Lula retomou o tema, propondo um Fome Zero Mundial, financiado pelos países ricos.

 

 

 

 

  Fome e guerra
Desculpe-me a assertividade, porém país rico algum vai ajudar a acabar com a fome no mundo, nem "permitir que se pesque". Em situações especiais, de alta comoção mundial, tirarão migalhas da guaiaca para dar uma esmola à turba famélica. Porém, jamais vão deixar suas próprias prioridades para atender a desgraça alheia. Mesmo sabendo que a fome é o principal componente que move fluxos migratórios, violência, tráfico de drogas, terrorismo e outras desgraças que se abatem sobre o mundo - o Primeiro inclusive!. Usemos a estatística da FAO (800 milhões de famintos) e sua estimativa financeira (US$ 2,00/pessoa/dia) para acabar com a fome. De acordo com esses números, seriam necessários US$ 1,6 bilhões/dia ou US$ 584 bilhões/ano para debelar a fome no mundo, através do condenado sistema paternalista de distribuição de alimentos.

Compromissos
Portanto, apenas os US$ 500 bilhões que serão torrados para defenestrar Saddam Hussein aplacaria a fome por 312 dias. Ao final de um conflito que esperamos não ocorra, gastou-se para matar centenas de milhares de iraquianos o equivalente à salvação de 30 ou 40 milhões de pessoas, que vão morrer de fome, ou em decorrência dela. Seria Bush um monstro, um insensível? Não teria essa informação? Todos sabemos que não se trata disso. Trata-se, sim, de garantir petróleo para um país com 2% da população, mas que gasta 25% da energia mundial. De garantir bons negócios para a indústria petrolífera - que financiou a campanha de Bush - no sub-solo iraquiano, que tem a segunda maior reserva de petróleo do mundo. De dar oxigênio à falida indústria siderúrgica americana, que também investiu na campanha eleitoral. De garantir a sobrevivência de outro financiador, a indústria bélica americana – se não houver guerras, venderão para quem? Trata-se de testar as novas máquinas de matar, o que só é possível em uma guerra de verdade.
  Subsídios
Infelizmente, essa matemática dantesca não se esgota aí. Os países ricos gastam, anualmente, US$ 327 bilhões em subsídios agrícolas. Nesse caso, muito mais que 204 dias de alimento, a cada ano, o subsídio significa o seqüestro da vara de pesca. Na ausência de subsídios agrícolas de europeus e americanos, mais da metade da fome no mundo poderia ser debelada, pois são eles que impedem pequenos agricultores da África, da Ásia e da América Latina de competir no mercado internacional de produtos agrícolas. Muitos desses agricultores competem, e bem, com seus congêneres europeus ou americanos. Só não conseguem competir com os Departamentos de Tesouro desses países.

 

 

 

  Dantesco
Se Dante Alighieri vivo fosse, seu gênio poético continuaria insuperável. Inspirado pelos fatos acima, cunharia novamente a mesma frase, colocada na porta do Inferno. Inferno que está em qualquer lugar onde haja fome, doença, falta de renda e de perspectiva, e não no subsolo de Jerusalém, como imaginado na Divina Comédia. Lasciate ogni speranza, voi che'ntrate é, na realidade, a divisa marcada a fogo, qual se marca um animal, nas crianças que ousam nascer fora das fronteiras de países ricos.

 

 

 

 

 

Tá ruim, mas tá bão!

Décio Luiz Gazzoni

Essa frase curta, com enorme profundidade filosófica, não foi concebida por Confúncio, Sócrates, Platão, Descartes ou Herbert Marcuse, embora, com esse mote, seja possível elaborar uma dúzia de teses de doutorado sobre a filosofia da percepção humana. O dito consta do acervo intelectual da Fátima, empregada doméstica lá de casa. Voltaire (François-Marie Arouet), com sua fina ironia e seu sarcasmo, captou a profundidade do tema - sem cunhar a frase - em Cândido (ou o Otimismo). A obra contrapõe ingenuidade e esperteza, desprendimento e ganância, caridade e egoísmo, delicadeza e violência, amor e ódio. Temperado com discussões filosóficas sobre causas e efeitos, razão suficiente e ética. Mas, acima de tudo é uma ode ao conformismo panglossiano. O romance é uma sátira à Leibnitz, o qual sustentava que o mundo era o melhor possível, que Deus não poderia ter construído outro e que tudo corria às mil maravilhas. Voltaire não comungava dessa visão otimista, dedicando-se a explicar o melhor dos mundos possíveis, com deboche nem sempre sutil.   Dignidade
"Seo dotô, uma esmola, para um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão". O inesquecível Luiz Gonzaga imortalizou o sonho de dignidade do sertanejo, vítima da seca e das oligarquias nordestinas – a indústria da seca. O pobre não se rende à indignidade, até pode aceitar (ou pedir) uma esmola se a esperança é a última virtude que lhe resta. Mas, o que ele quer mesmo é poder encarar o mundo de frente, vencer por seu esforço. Por isso, é necessário muito cuidado ao analisar as razões da fome, seja no mundo ou no Brasil. Trazido ao primeiro plano da reflexão nacional, o tema instigou a polêmica sobre fome e pobreza, temperada pela inconfidência do Secretário de Saúde de Guariba "...aqui, o pessoal é pobre, mas não passa fome. O que precisamos, mesmo, é água e estrada". Opa, olha aí a vara de pesca!

 

 

 

  Causas
Analisando a filosofia de Luiz Gonzaga, o nordestino, de Voltaire, o francês ou a inocência politicamente incorreta do secretário de Guariba, chega-se sempre ao mesmo ponto. É necessário identificar, com toda a clareza, as causas estruturais da pobreza (fome é um dos seus sintomas), para erradicá-la. Ao contrário do apregoado, de quando em vez, a baixa oferta de feijão, mandioca ou arroz não é causa da fome. Ela denuncia a falta de renda da população para adquirir esses "objetos de desejo". Se a área de soja, laranja ou cana fosse destinada a arroz ou feijão, seus proprietários passariam a engrossar o MST e o MSC (Movimento dos sem Comida). Reforma agrária, incentivo à agricultura familiar, tecnologia apropriada da Embrapa e outras iniciativas são meritórias e fazem parte da solução. Porém, não esgotam a questão.

 

 

Foco
Há fome, como há doença, analfabetismo ou falta de moradia, porque não há renda. Falta renda porque escasseiam empregos e oportunidades. Falta emprego porque o país está com o freio-de-mão puxado, pela escrachada taxa de juros (enche-bucho de banqueiros), e com marcha à ré engatada, pela vergonhosa derrama tributária. Falta renda porque o patrão não pode pagar mais, vez que o Governo o assaca com uma pressão de impostos insuportável. Falta emprego porque a legislação trabalhista não o incentiva. Falta renda porque os encargos sociais forçam-na à míngua. Falta renda porque não basta distribuir terra. Primeiro, e acima de tudo, é preciso evitar que o agricultor seja dela expulso. Reinstalá-lo é mais caro e, em ambos os casos, além de terra é necessário acesso a crédito, tecnologia, assistência técnica, educação, associativismo, estradas, armazenagem, comercialização e por aí vai. Encerro com a última tirada filosófica: "Um problema bem definido é meia solução"! Ou seja, "tá ruim, logo não pode tá bão", é preciso lancetar o tumor que pereniza a pobreza.
  Grande aquisição
A UEL, primus inter pares da Academia Brasileira, terá um aluno à sua altura, no próximo semestre. Primeiro colocado no vestibular para o curso de Jornalismo, Bruno, fã de Luiz Fernando Veríssimo, tem a verve de Diogo Mainardi, a língua ferina do saudoso Paulo Francis e a impertinência de Jânio de Freitas. Quiçá, algum dia, o leitor terá o privilégio de vê-lo ocupando esse espaço, em substituição ao simulacro de escriba, talhado a foice e facão, que vos importuna toda a sexta. Ah!, antes que eu esqueça: Bruno é meu filho, que amanhã completa 18 anos. Valeu, cara!

 

 

 

Sem açúcar, com afeto

Décio Luiz Gazzoni

Antes da era "diet", vi muita gente tomando água tônica, com a justificativa que era um refrigerante amargo, logo com pouco açúcar. Ledo engano, porque o quinino, que confere o sabor característico da água tônica, é muito amargo. Assim, na composição do refrigerante utiliza-se muito açúcar ou edulcorante (versão diet). Os pais sabem da dificuldade para fazer uma criança ingerir um remédio amargo. Tanto que a expressão "remédio amargo" passou para o cotidiano como alguma coisa ruim, mas que faz bem – o mal necessário. E que dizer das pessoas que não se habituaram com adoçantes sintéticos, ou que morrem de medo de problemas de saúde, especialmente tumores malignos, que seriam decorrentes de seu uso?   O achado
Hipertensos, diabéticos, aidéticos e rechonchudos já podem comemorar, pois os seus problemas acabaram!. A industria farmacêutica poderá dispensar o açúcar usado para disfarçar o gosto amargo dos medicamentos. O cafezinho poderá dispensar açúcar ou adoçante. Também será desnecessário o sal ou as gorduras que tornam palatáveis alimentos, bebidas ou remédios amargos. O milagre pode vir das aplicações práticas de substâncias que bloqueiam os receptores do sabor amargo, localizados na língua. A descoberta foi publicada na edição de 26 de fevereiro da revista New Scientist. A empresa obteve a patente das substâncias junto ao órgão competente dos EUA e aplicações na medicina e na indústria de alimentação já estão sendo desenvolvidas e testadas.

A l'oeuvre on connait l'artisan
Pela obra conhece-se o artista. La Fontaine usou essa frase na fábula infantil "Os Zangãos e as Abelhas". A empresa que fez a descoberta chama-se Linguagen (tudo a ver!) e foi fundada pelo Dr. Robert Margolskee. Quem se interessa pela área sabe que o Dr. Robert pertenceu à Escola de Medicina Monte Sinai (Nova Iorque), onde ficou famoso por elucidar a cadeia de reações químicas que culmina com a percepção do sabor amargo. A descoberta do cientista despertou o empresário que convivia, adormecido, na mesma pessoa. Ele percebeu a oportunidade de grandes negócios ao descobrir que, quando as células receptoras do sabor, localizadas na boca, detectam o sabor amargo (que pode ser da cafeína do chá ou café ou o ibuprofen do analgésico) elas liberam uma proteína chamada gustaducina. Essa proteína deflagra uma série de reações que resultam em um impulso nervoso dirigido ao cérebro informando-o que a sensação é de amargor.

 

  A pesquisa
Foram testados diversas substâncias químicas para bloquear a liberação da gustaducina. Em tubos de ensaio, as substâncias eram colocadas em contato, juntamente com um indicador. Quando a cor da mistura ficava azul, indicava produção da proteína. Se a solução não azulava, então a substância era testada em ratos, para verificar se os mesmos distinguiam uma substância amarga de água destilada. As substâncias que produziram os melhores resultados com ratos, e que possuíam inocuidade assegurada, eram testadas pelos próprios cientistas, misturadas com café amargo e suco natural de pomelo ou toranja (grapefruit). Na avaliação dos cientistas, na presença das substâncias bloqueadoras, a sensação era de um produto mais "mole, sugoso e levemente adocicado". No organismo, essas substâncias ligam-se aos receptores de sabor amargo, impedindo a liberação da gustaducina, abortando a informação ao cérebro sobre a detecção de amargor.

 

  Ocorrência
Na prática é mais simples bloquear a sensação de amargor do que remover a plêiade de substâncias que conferem esse sabor. Os bloqueadores de amargor são nucleotídeos, os mesmos "tijolos" que compõem o DNA e o RNA, responsáveisl pelo código genético. Todos os produtos aprovados são de ampla ocorrência natural e já estão presentes em vários alimentos. Os primeiros testes estão sendo feitos com a incorporação do gene para introduzir os bloqueadores (ou aumentar o seu teor) em brócolis e soja, que são vegetais com características de alimentos funcionais muito importantes. O objetivo é o de obter, mais rapidamente, produtos com irrestrita adesão da massa de consumidores. Os cientistas alertam que as substâncias que bloqueiam o sabor amargo não interferem com a detecção de gosto ácido, nem inibem odores, tornando possível detectar eventuais alimentos estragados da mesma forma como ocorre com alimentos convencionais. Em suma, de amarga basta a vida!

 

Tirando leite da pedra

Décio Luiz Gazzoni

A viabilização de um empreendimento agrícola depende de um conjunto de produtos e sub-produtos, especialmente de valor agregado, o que torna o negócio lucrativo ipso facto. Na cadeia da cana-de-açúcar, além do açúcar e do álcool, é possível movimentar um complexo de sub-produtos que contribuem para a rentabilidade do conjunto. Ponte entre a agricultura de alimentação e a agricultura energética, a cana de açúcar é um paradigma do aproveitamento das múltiplas oportunidades que viabilizam um agronegócio.

 

 

 

 

 

 

  Levedura
Cada litro de álcool produzido deixa como resíduo 30 g de levedura (Sacharomyces cerevisiae), em base seca, após a fermentação do caldo de cana. Como o Brasil produz, anualmente, mais de 15 bilhões de litros de álcool, a produção estimada de levedura é de 450 toneladas. Quando não desprezada, a levedura é vendida in natura para arraçoamento animal, ao preço de R$0,80/kg. Agora, que tal vendê-la a R$8,00/kg? Aparenta ser difícil incrementar a rentabilidade em 1000%? Não para a Usina Santo Antonio (Sertãozinho – SP), a pioneira que acreditou na tecnologia desenvolvida pelo pesquisador Valdemiro Sgarbieri, envolvendo a Copersucar e o ITAL, financiada pela FAPESP. O pesquisador desenvolveu diversos produtos para alimentação humana, a partir do resíduo de levedura.

 

 

  Sub produtos
A pesquisa descobriu quatro produtos que podem ser elaborados da levedura: o autolisado, enriquecedor protéico com farto uso na indústria de embutidos; a parede celular, espessante de sopas e componente de receitas de salgadinhos e quitutes; o extrato de levedura, para tempero de saladas e maioneses; e o concentrado protéico, para elevar o teor protéico de pães, massas e biscoitos. Além de proteína, os sub-produtos da levedura são ricos em vitaminas do complexo B e em manganês, magnésio, zinco e ferro. Do resíduo industrial da levedura obtém-se, também, a levedura integral seca, para ser usada na produção de álcool ou para obtenção de medicamentos, como ácidos nucléicos. Apenas as usinas filiadas à Copersucar produzem cerca de 100 ton de resíduo de levedura. Essas usinas poderão acrescentar à sua receita R$800.000,00/ano, em função da agregação de valor à levedura.

 

Pequena usina, grande escala
As boas novidades não se esgotaram. Tendo a cana-de-açúcar como epicentro, é possível criar um agronegócio complexo. O professor Romeu Corsini, da USP em São Carlos, elaborou uma proposta de maximização do uso da área e outros fatores de produção em torno de uma mini usina. Tendo o álcool como âncora do negócio, o professor propõe uma ocupação racional para áreas de, aproximadamente, 4.000 ha. Desses 17% são computados, obrigatoriamente, como reserva florestal. No restante da área cultiva-se cana-de-açúcar e sorgo sacarino, além de outros produtos agrícolas e da criação de 2.800 cabeças de gado, em regime de semi-confinamento, gerando 130 empregos fixos. A idéia de integrar o sorgo não é casual, porém objetiva manter os equipamentos da usina integralmente ocupados, eliminando a capacidade ociosa que, normalmente, paralisa a usina durante quatro meses no ano.
  Produtos da mini usina
Além do álcool, o projeto prevê a produção de bagaço, vinhoto e levedura e forragem para o gado. A forragem vem dos ponteiros da cana e do sorgo, altamente nutritivos. O álcool tem seu uso como combustível, anti-séptico ou serve de base para a indústria alcoolquímica. O vinhoto é fermentado, produzindo biofertilizante e biogás. O bagaço e o biogás servem para alimentar uma usina termoelétrica de alta eficiência, com capacidade para gerar 6,36 MW de energia elétrica, a um custo estimado de US$6,58/MWh, além do aproveitamento da levedura, conforme descrito acima. O projeto do professor Corsini está agora sendo avaliado por um consultor internacional, a fim de confirmar sua viabilidade técnica e econômica que, segundo o autor, permite o retorno do capital investido em menos de sete anos.
  Política
Além da viabilidade financeira, que depende do empresariado, o setor ressente-se de uma política industrial e energética sustentável e de longo prazo. Somente quando o consumidor tiver certeza absoluta que não vai faltar álcool na bomba, ou que os preços não serão elevados ao sabor de externalidades conjunturais, será possível dispor de uma portentosa frota de veículos movidos a álcool. Isso exigirá a duplicação da produção de álcool carburante, reduzindo a poluição ambiental provocado por derivados de petróleo e gerando empregos e renda no interior do país.

Resistência de pragas a agrotóxicos: uma abordagem evolucionista

Décio Luiz Gazzoni 

   A capacidade adaptativa das pragas agrícolas aos agrotóxicos utilizados para seu controle é um exemplo didático da teoria da sobrevivência dos mais aptos, brilhantemente descrita por Darwin em A Origem das Espécies. Para quem se interessa pelo assunto, e ainda não leu o livro, o mesmo pode ser acessado no endereço http://www.tbi.univie.ac.at/Origin/origin_toc.html.       A teoria evolucionista antecedeu Darwin e tinha em Lamarck um de seus expoentes. Segundo ele, todas as espécies teriam evoluído de outras espécies ancestrais. Isso posto, no limite haveria um ancestral comum a todas as espécies. Calcado na premissa de que todo o ser vivo tem um objetivo permanente, que é a perpetuação da espécie, as características diferenciais adquiridas decorreriam da necessidade de adaptação ao ambiente, a fim de atingir esse objetivo. Por exemplo, um órgão ou função muito utilizado tornar-se-ia mais forte, vigoroso ou de maior tamanho. Ao contrário, um órgão ou função não utilizado atrofiaria, estando condenado ao desaparecimento.

Perpetuação dos caracteres

De acordo com a teoria evolucionista, as características adquiridas por um espécime seriam incorporadas à espécie, através de sua descendência. A adaptação seria progressiva, idealizando uma perfeita interação com os fatores ambientais. Quando a diferenciação, ou a especialização, provocasse um distanciamento significativo das características da espécie original, estaria configurada uma nova espécie. O mesmo raciocínio seria válido para as demais hierarquias sistemáticas.

 

  Darwin promoveu alguns ajustes na teoria de Lamarck. De acordo com ele, a população de uma espécie é relativamente constante entre gerações. Na luta pela sobrevivência, e por força da cadeia alimentar que envolve diferentes espécies, parcela da população de cada uma seria naturalmente eliminada. A premissa da teoria é que os sobreviventes são os mais aptos e melhor adaptados ao meio ambiente.

 

 

  Em conseqüência, ocorre uma seleção natural, com vantagens para os espécimes melhor adaptados às relações interespecíficas ou aos condicionantes ambientais. Darwin acreditava que os espécimes melhor adaptados também disporiam de uma vantagem reprodutiva, o que permitiria fixar os caracteres diferenciais, nas gerações futuras. Como os mecanismos hereditários ainda não eram conhecidos, Darwin não conseguiu explicar como surgiam as variações dentro das espécies, nem como eram transmitidas à descendência.

 Darwin e as cadeias alimentares

  Vamos assestar a lupa no micro-universo da relação entre plantas, pragas e seus predadores (interação tri-trófica). Em qualquer exploração agrícola, encontramos um segmento da cadeia alimentar, cujo nível trófico inferior é representado pelas plantas, das quais se alimentam as pragas, por sua vez alimento de seus próprios predadores. Na luta pela sobrevivência, cada espécie busca mecanismos para defender-se de seus predadores, ao mesmo tempo em que necessita ludibriar as defesas de suas presas. Se imaginarmos essas interações microcósmicas ajustando-se ao longo de milhares de anos, sem interferência externa muito forte, observaremos que a tendência é um equilíbrio dinâmico entre as espécies.      Sempre que um evento propicia uma vantagem competitiva a uma espécie, esse fenômeno induz o acionamento ou o desenvolvimento de mecanismos de defesa do elo alimentar inferior. Igualmente, sempre que uma presa desenvolve um mecanismo de defesa diferenciado, seus predadores buscam ajustar-se à nova situação, perseguindo o equilíbrio. E assim deveria ser, como na oração do Glória ao Pai: "Sicut erat in principio, et nunc, et semper, et in saecula saeculorum"!

  Agricultura e desequilíbrio

 Deveria ser, não fora uma espécie diferenciada dentro da Natureza, cognominada Homo sapiens. Ao favorecer determinadas plantas (ou animais), a fim de facilitar seu acesso à alimentação ou ao vestuário, o Homem privilegia um elo da cadeia alimentar e viola uma das premissas do equilíbrio ecológico: a diversidade de espécies numa dada área.

    Pelas leis naturais, a maior população de uma espécie (leia-se, maior disponibilidade de alimento) significa ambiente mais propício ao estabelecimento de seus predadores. Em conseqüência, plantas que conviviam com insetos ou fungos em um ambiente de "paz negociada", em consonância com as leis naturais, sofrem um assédio que põe em risco a sua sobrevivência.

 

 

   Pode parecer paradoxal que o aumento populacional de uma espécie deflagre mecanismos que possam levar, in extremis, ao risco de seu desaparecimento. Porém, as leis naturais privilegiam o meio-termo e os eventuais desequilíbrios exacerbados conduzem a um tratamento de choque.

    Como regra geral, a população de uma espécie que experimenta crescimento anormal é fortemente deprimida no evento seguinte, conduzindo a uma redução também drástica de seus predadores. Isso permite a recomposição da população da espécie de nível trófico inferior, retomando-se o ciclo natural.

Atente-se que, nas crises de desequilíbrio estão as melhores oportunidades para discriminação de indivíduos com mecanismos de defesa mais adequados, aplicando-se, então, a teoria evolucionista.

 

      Todavia, o Homem não apenas privilegia determinada espécie, como incorpora nelas atributos que lhe sejam mais favoráveis. Assim, é difícil promover o equilíbrio utilizando apenas mecanismos naturais, porque a premissa fundamental da diversidade de espécies nunca estará presente. Ademais, o processo de melhoramento tende a reduzir a rusticidade das espécies vegetais, fazendo com que genes que expressam mecanismos de defesa, aprimorados ao longo de centenas de milhares de anos, sejam irremediavelmente perdidos ou dispersem-se, com baixa freqüência, na população. Por esse motivo, a agricultura nunca prescindiu de métodos de controle da população das pragas agrícolas, para permitir a produção em escala.

 

     Agrotóxicos modernos

    O século XX foi palco de um processo alucinante de descoberta de agrotóxicos, com uma evolução de diversas famílias de produtos químicos, no curto espaço de pouco mais de meio século. O uso de agrotóxicos tem como teoria subjacente o controle da população de uma espécie (praga), que cresce exageradamente, em função da disponibilidade de alimento. Coincidentemente, esse mesmo alimento é disputado pelas pragas e pelo Homem.      Na prática, além de controlar a espécie alvo, os agrotóxicos mostraram efeitos colaterais como a alta toxicidade a outras espécies, em especial aos animais de sangue quente e aos inimigos naturais das pragas que deveriam controlar. A indústria química tem buscado contornar essa característica negativa, através do desenvolvimento de agrotóxicos cada vez mais específicos para a(s) espécie(s) alvo e menos perniciosos para as demais.       Entretanto, existe um efeito colateral que independe da fórmula química: o desenvolvimento de resistência das pragas aos agrotóxicos. Esse fenômeno é um exemplo didático da teoria evolucionista, mostrando como uma espécie utiliza determinados mecanismos já existentes, ou desenvolve novos processos, em contraposição às ameaças ambientais à perpetuação da espécie.

 Darwin e os agrotóxicos

    Com a aplicação dos agrotóxicos ocorre uma seleção natural dos indivíduos mais aptos. Quanto maior for a quantidade de agrotóxico usado (doses mais altas, maior freqüência de aplicação, maior área coberta, maior número de culturas pulverizadas para o controle da mesma praga, na mesma região), maior é a pressão de seleção, portanto maior a possibilidade de sobrevivência, em maior proporção, de indivíduos resistentes ao agrotóxico.

 

      Para complicar a situação, existe um fenômeno denominado de resistência cruzada, em que um mesmo indivíduo pode tornar-se resistente não apenas ao agrotóxico que foi aplicado para seu controle, como a todos os demais que tenham o mesmo mecanismo bioquímico de ação no organismo, ou cuja desativação utilize as mesmas rotas bioquímicas no organismo do inseto.

 

 

      A resistência de pragas a agrotóxicos é um dos principais desafios tecnológicos da agricultura moderna. A falta de atenção para o problema tornou impossível o prosseguimento de criações e cultivos, em determinadas áreas do planeta, inviabilizando seu aproveitamento comercial. A estratégia para evitar o surgimento da resistência genética pressupõe o perfeito conhecimento dos seus mecanismos de desenvolvimento e a atuação integrada dos diversos elos das cadeias produtivas.

Fatores que influenciam a resistência

    A ciência dispõe de um significativo conhecimento acumulado sobre o processo de resistência de pragas a agrotóxicos. O autor que vos escreve desenvolveu um modelo matemático que permitiu analisar milhões de combinações, envolvendo dezenas de possíveis fatores que interferem, positiva ou negativamente, no desenvolvimento da resistência da lagarta da soja a inseticidas (Pesticide Science, 53:109-122. 1998).

    O exercício do modelo demonstrou que a taxa de mortalidade do inseto (que é função da dose do agrotóxico), a freqüência inicial do(s) gene(s) envolvidos com o mecanismo de resistência e a dominância genética do(s) alelos resistentes são os fatores mais críticos, que apressavam o desenvolvimento da resistência. Porém, também foram importantes outros fatores como a migração dos insetos (miscigenação populacional), a capacidade reprodutiva dos indivíduos resistentes, e o nível de ação (população da praga) para início do controle.       Dos fatores estudados, apenas a taxa de mortalidade da praga e o nível de ação podem ser diretamente manipulados pelo agricultor. Indiretamente, o agricultor pode interferir na taxa de intercâmbio do "pool" genético, permitindo a presença de refúgios - áreas da lavoura não pulverizadas, onde a espécie pode desenvolver-se sem a pressão de seleção.

 

 

 

     Os demais fatores não dependem da atuação direta do agricultor. Além desses fatores, a principal ferramenta que o agricultor dispõe para frear e reverter o desenvolvimento de populações de uma praga resistentes a agrotóxicos é a utilização de agroquímicos com diferentes modos de ação, para evitar a pressão de seleção dos indivíduos mais aptos.

 

 

Biotecnologia

    Com o advento da biologia molecular e da biotecnologia, está sendo possível estudar o genoma das pragas, comparando os indivíduos suscetíveis aos resistentes a um determinado agrotóxico. A Estação Experimental de Rothamsted (Reino Unido) é um dos centros de referência mundial sobre o assunto. Nos seus laboratórios está sendo desenvolvido um estudo para entender como a amplificação de determinados genes confere maior poder de detoxificação de inseticidas ao pulgão Myzus persicae.      No Brasil, esse pulgão é uma praga séria de inúmeras culturas, em especial hortaliças, ornamentais, fruteiras, fumo, batata e algodão. No mesmo inseto, os cientistas estudam a insensibilidade do local de atuação de inseticidas, ocasionada por mutações gênicas. Através desses estudos, objetiva-se melhor entendimento do papel das enzimas e da função dos canais de íons, do rearranjo genômico e do controle da expressão do gene sobre a resistência a agrotóxicos.       Alguns dos mais potentes mecanismos de resistência a agrotóxicos resultam de modificações das proteínas presentes nos locais de atuação do inseto, ao nível celular. No curso da conversa que mantivemos, recentemente, com os cientistas em Rothamsted, discutimos as pesquisas que investigam formas menos sensíveis da acetilcolinesterase, um neuro-transmissor que é bloqueado por inseticidas fosforados e carbamatos, bem como a atuação dos inseticidas piretróides no canal de sódio.

Genes mutante 

   A funcionalidade das mutações foi confirmada pela expressão em laboratório, tanto de genes clonados quanto de mutagênese dirigida, eventos que tornam o M. persicae resistente a agrotóxicos. Sabe-se que os animais vertebrados são menos sensíveis aos inseticidas piretróides que os invertebrados (insetos, por exemplo). Uma das descobertas mais revolucionárias da equipe de Rothamsted é um aminoácido responsável pela toxicidade seletiva dos piretróides a animais vertebrados e invertebrados. Os cientistas verificaram que a resistência de insetos a inseticidas piretróides é parcialmente devida a esse aminoácido, que é similar àquele encontrado nos vertebrados.

 

 

  Os pesquisadores também estão entendendo melhor o funcionamento dos canais de sódio nos vertebrados e invertebrados. Um mecanismo alternativo de resistência envolve a detoxificação de um inseticida antes que ele atinja o seu alvo biológico de atuação. Por exemplo, uma enzima do grupo das esterases possui a propriedade de inativar alguns inseticidas antes que eles atuem no organismo. Os pesquisadores verificaram que os genes responsáveis pela produção da enzima estavam presentes no genoma de M. persicae, porém a enzima se encontrava em baixos teores, insuficiente para uma atuação eficiente.

 

 

 

 

    Esses genes (conhecidos como E4 e FE4) foram clonados e amplificados, o que tornou o inseto resistente a alguns inseticidas. Concluiu-se que muitas espécies de insetos possuem o gene que confere resistência, o qual se encontra "silenciado". Sob determinadas condições o gene se expressa, o que permite rápida seleção dos indivíduos portadores do caráter.

    No caso do estudo em tela, os cientistas procederam à metilação do gene, através da introdução da 5-metilcistoina (5mC), o que representou uma inovação no conhecimento já existente, pois não havia registro de alteração da expressão de um gene por metilação, em invertebrados. Já nos vertebrados, onde o assunto havia sido estudado, o efeito é o contrário, pois a metilação do DNA implica na perda da capacidade de expressão do gene.

    Canais de sódio

  Os inseticidas piretróides representam 25% do mercado mundial, devido ao seu largo espectro de atuação contra insetos, sua ação fulminante após a aplicação e pelo seu impacto reduzido sobre animais vertebrados. A resistência a inseticidas piretróides, em muitas espécies, representa um sério entrave à continuidade do seu uso.

    Os canais de sódios são porções da membrana celular, que permitem ou não a passagem de íons de sódio em função da diferença de potencial elétrico a cada instante. Esses canais constituem um alvo biológico para diversos piretróides naturais e sintéticos. Por esse motivo, existem diversos grupos de cientistas estudando as bases moleculares da resistência de insetos a piretróides. Por exemplo, o efeito das mutações genéticas sobre a vulnerabilidade dos canais de sódio à ação de piretróides tem sido investigado.

 

    Esses estudos identificaram algumas mutações na mosca doméstica, como a do gene Met-918 para Thr e do Leu-1014 para Phe, as quais, posteriormente, foram encontradas em diversos insetos de importância agrícola. Os genes mutantes foram expressos em oócitos e demonstraram ter um duplo efeito.

    Primeiramente, verificou-se que a afinidade da ligação dos inseticidas na entrada do canal de sódio é reduzida, permitindo uma ligação reversível e uma rápida recuperação do inseto, após a exposição a um piretróide. Em segundo lugar, as propriedades cinéticas do canal são alteradas pelas mutações, fazendo com que o equilíbrio seja deslocado para o estado inativado dos canais de sódio, reduzindo a duração da sua abertura, durante a fase de despolarização da membrana protéica.

  Toxicidade diferencial

Essa última descoberta é particularmente importante porque os piretróides se ligam, preferencialmente, aos canais quando estes se encontram abertos. Também é importante elucidar o tema, porque a toxicidade diferencial dos piretróides para insetos e mamíferos se encontra justamente na sua ligação com os canais de sódio.

   Os cientistas têm encontrado inúmeras dificuldades para elucidar, em definitivo, essa atuação diferencial, porque existem dez diferentes genes nos mamíferos que condicionam a atuação dos canais de sódio. Para complicar, esses genes se expressam de forma diferenciada entre os tecidos e em função do estágio de desenvolvimento do organismo.     Entretanto, algumas informações relevantes foram obtidas. Por exemplo, verificou-se que tanto o gene Leu-1014 quanto o Thr-929 são altamente similares nos insetos e nos mamíferos. Conseqüentemente, não poderiam estar envolvidos com a suscetibilidade diferencial. Porém, o gene Met-918 possui uma atuação muito diferente entre os dois grupos de organismos.       Em um experimento, foi substituída a iso-leucina do gene Met-918 por metionina, o que significou um aumento de 100 vezes na sensibilidade de ratos aos piretróides, o que os tornou tão suscetíveis quanto os insetos. Os cientistas suspeitam que a metionina tenha uma função importante na ligação dos piretróides aos canais de sódio.

    Perspectivas

    Estudos envolvendo as bases moleculares da resistência de insetos a piretróides podem conduzir ao desenvolvimento de diversas tecnologias interessantes, através do ferramental biotecnológico. Por exemplo, os cientistas que desvendaram as particularidades das interações entre piretróides e os canais de sódio estão estudando o desenvolvimento de moléculas similares a esses inseticidas, porém infensas aos mecanismos de defesa dos insetos, que protegem os canais de sódio.

    Se bem sucedido, esse estudo permitirá descobrir novos produtos com efeito inseticida, sem os inconvenientes do acentuado desenvolvimento de resistência de insetos, como ocorre com os piretróides, porém mantendo sua reduzida toxicidade para mamíferos.

 

 

      No futuro, podem ser desenvolvidos testes sumários para detectar a presença dos genes "silenciados", que poderiam ser ativados por mutação ou outro fenômeno ambiental que favorecesse a expressão do gene. Essa informação seria assaz importante no estabelecimento de estratégias de manejo da resistência a inseticidas.

 

    Paralelamente, os estudos para estabelecer a toxicidade diferencial de piretróides a vertebrados e invertebrados permitirão abrir novos rumos no tratamento de certas desordens neurológicas do organismo humano, ligadas aos canais de sódio, bem como uma elucidação do efeito das neurotoxinas em geral, descortinando novas perspectivas terapêuticas para a espécie humana.

 

Box

Canais de sódio

O mecanismo de ingresso de alguns cátions na célula faz justiça à genialidade do Criador. Os canais de sódio constituem parte do mecanismo de intercâmbio de íons dos organismos. Além do sódio, existem outros canais importantes, que são seletivos e recebem a denominação do íon para o qual o canal é mais permeável, como o cálcio ou o potássio. Por estarem ligados a funções neurológicas, sua importância, do ponto de vista médico, tem aumentado o interesse em pesquisas sobre os canais de sódio.   Embora o canal de cada cátion tenha uma estrutura levemente diferenciada, eles são semelhantes entre si. São formados por proteínas, sendo a mais importante a subunidade alfa, constituída por uma glicoproteína. Esta é composta de aminoácidos, formando seis hélices que permeiam toda a membrana celular, do interior ao exterior da célula. Merece menção especial a quarta hélice, à qual se atribui a função de voltímetro, ou sensor de voltagem dos canais. Na espécie humana, o estudo de canais do tecido cerebral, permitiu identificar uma mega subunidade alfa (260.000 a 300.000 Dalton) e uma pequena subunidade beta (30.000 a 36.000 Dalton).

Estrutura

O canal de sódio é um poro da membrana celular, composto por quatro proteínas, de estrutura similar, com regiões de cadeias polipeptídicas muito longas, que permanecem ligadas entre si. Cada um desses domínios protéicos, empilhados simetricamente em torno de um poro aquoso central, contém seis hélices, abrangendo toda a espessura da membrana. O canal apresenta alças que ligam os quatro domínios entre si. Além de conferir ao canal seletividade iônica, é nessas alças que se localiza o alvo biológico - ponto de ligação de alguns bloqueadores do canal, como os inseticidas piretróides. As extremidades da alça são compostas por radicais do tipo H2N ou CO2, introjetados no citoplasma.  

Fica assegurada, dessa forma, a transferência dos cátions (Na+, K+ e Ca++) para o interior da célula, contornando a dificuldade que eles têm de atravessar a estrutura lipoprotéica que forma a membrana celular, por não serem lipossolúveis.

Os canais de sódio, bem como outros canais catiônicos, são encontrados na membrana de células sensíveis à variação de cargas elétricas. Incluem-se nessa categoria as células nervosas, as musculares, as endotérmicas e o gameta feminino (óvulo)

 

Fluxo de íons 

   O canal permite a passagem de sódio quando está aberto, o que significa que a membrana está despolarizada. Em seguida, ele se desativa, apesar de mantida a despolarização, sobrevindo, ao final do ciclo, o fechamento, já com a membrana polarizada.

    Uma das hélices (a de número 4) contém resíduos positivamente carregados e é considerada o sensor de voltagem do canal. A despolarização da membrana faz esta hélice mover-se externamente, supostamente em um movimento rotatório semelhante a uma rosca-sem-fim. Não está elucidada a razão pela qual o deslocamento da hélice S4 produz a abertura do canal de sódio.

 

    O canal de sódio tem uma comporta de ativação que é acionada pelos movimentos das hélices S4 (o detector de voltagem), o que explica as variações do fluxo de íons durante o potencial de ação. Dispõe também de uma comporta de inativação acionada pela alça intracelular conectada aos domínios protéicos III e IV.

    O controle dos canais é feito por partículas de carga elétrica negativa, sendo as partículas de ativação denominadas de tipo M, enquanto as do tipo H são as partículas de inativação. Essas partículas movimentam-se entre as faces externa e interna da membrana. Quando o canal está em repouso, e o citoplasma possui carga negativa, as partículas migram para a face externa da membrana.

      Quando ocorre uma despolarização da membrana, as partículas fluem para o compartimento interno do canal. As partículas do tipo M, por terem cinética mais rápida, são as primeiras a migrar. Caso a membrana permaneça despolarizada, ocorre a inativação dos canais de sódio, em função da migração das partículas do tipo H para o compartimento interno. Na prática, qualquer fenômeno que provoque despolarização da membrana promove a abertura dos canais de sódio. Uma vez abertos, ocorre o fluxo de íons de sódio para o interior da célula.

 

 

    O processo de passagem dos íons para o interior da célula é muito sofisticado, dispondo de mecanismos como o denominado filtro de seletividade. Esse filtro é representado por um estreitamento físico do canal, permitindo a passagem de estruturas moleculares muito simples. Por exemplo, para ultrapassar essa barreira, os íons de sódio devem separar-se das moléculas de água agregadas à sua volta, caso contrário terão sua passagem bloqueada.

Bomba de sódio e potássio

    Cerca de 50% do peso de um organismo vivo é representado por água. Para manter a quantidade ideal de água no interior das células é fundamental o equilíbrio nas concentrações de algumas substâncias, em especial íons e proteínas, considerando o ambiente interno das células e o fluxo extracelular.

    Os canais catiônicos fazem parte do complexo arranjo que mantém esse equilíbrio que, no entanto, depende do bom funcionamento da chamada bomba de sódio e potássio. A bomba faz parte do sistema de equilíbrio hídrico e eletrolítico das células e tem como princípio os gradientes osmótico (íons) e oncótico (proteínas) entre o interior e o exterior das células.

 

 

  A bomba fica localizada na membrana plasmática, lado a lado com os canais catiônicos, dependendo do ATP para o transporte dos íons. O nome bomba deriva da possibilidade de a mesma operar no contra-fluxo do gradiente osmótico. Por exemplo, o potássio é transferido do meio extracelular, onde está em menor concentração, para o interior das células, mesmo quando sua concentração chega a ser 3.000% superior.

    A bomba em si é uma proteína que permeia a membrana celular, em toda a extensão, do exterior ao interior da célula. Ela atua através de uma enzima da família das ATPases, que são responsáveis pela transformação do ATP em ADP, promovendo a substituição de três íons presentes na molécula da proteína por dois íons de potássio.

  A molécula de ATP liga-se à proteína, na extremidade que permanece em contato com o citoplasma. A teoria correntemente aceita refere que os íons de sódio atuam sobre o ATP, mudando a conformação estrutural da proteína, permitindo a saída do sódio da célula. De sua parte, os íons de potássio detectam a mudança estrutural, ligando-se à proteína. Efetuada a ligação de dois íons de potássio, a proteína retorna à sua conformação original, permitindo o ingresso do potássio na célula.

 

 

 

  Estados do canal de sódio

    Fisiologicamente, um canal de sódio pode se encontrar em um dos seguintes estados:

aberto – permite a passagem dos íons, o que ocorre quando a membrana está despolarizada e com baixa carga energética;

fechado – bloqueia a passagem dos íons devido à forte polarização da membrana, que se encontra em repouso;

inativado – representado pela ausência quase total de energia, seguindo-se a um período em que tenha permanecido aberto; e

bloqueado – estado anormal, em que seu funcionamento é impedido pela ação de alguma substância. O bloqueamento pode ser irreversível (toxinas e venenos, incluindo inseticidas) ou reversível (anestésicos).

Os estados alternam-se entre si, permanentemente, em função das necessidades de entrada ou saída de sódio das células. A diferença de potencial elétrico varia de -70mV (em repouso), alternando a polaridade até atingir o potencial de equilíbrio de sódio, o que significa uma voltagem de aproximadamente +50mV. O período de inativação dos canais possui uma função importante, que é a de evitar os espasmos elétricos decorrentes das mudanças de polaridade. Assim, apesar de a membrana ainda estar despolarizada, após uma abertura, segue-se um período de inativação, variável entre 10-50 mseg, após o que a membrana retoma o potencial negativo.   Os canais de sódio são bloqueados por diversas substâncias. Os inseticidas piretróides têm no canal de sódio um de seus alvos biológicos preferenciais. A saxitoxina, uma toxina presente nas algas que formam a maré vermelha, é um inibidor dos canais de sódio. A tetrodotoxina, produzida por peixes como o baiacu, é um dos mais poderosos venenos conhecidos, bloqueando de forma irreversível o canal de sódio. Os anestésicos locais bloqueiam a propagação do impulso nervoso por se ligarem a um sítio localizado no interior do canal de sódio, configurando o exemplo clássico de ligação reversível.

Representação esquemática da membrana celular, com os canais de sódio e de potássio e a bomba de sódio e potássio.

Energia Verde

Décio Luiz Gazzoni

Após a insossa e burocrática Conferência da ONU para o Desenvolvimento Sustentável de Joanesburgo (Rio+10), um seleto grupo de cientistas, empresários, representantes da sociedade civil e de governos, reuniu-se em Amsterdam (Holanda), para formular a propositura de um mercado internacional de biomassa em larga escala (Biotrade). Participamos do Workshop, representando o Brasil, demonstrando que o nosso país pode suprir o mundo de alimentos, fibras e de energia limpa, sem competição entre si. A teimosia de Mr. Bush em aplicar seu próprio conceito de justiça à manu militare, em seu teiró com o sanguissedento Saddam Hussein, traz à baila o tema complexo e escorregadio da insustentabilidade da atual matriz energética mundial. Deus e a História julgarão Bush e, por haver invadido a Babilônia, quiçá com as mesmas palavras bíblicas Mane, thecel, phares (contado, pesado, dividido) do julgamento de Baltazar (Daniel, V). Aos bem intencionados, compete construir um mundo melhor.   Energia fóssil
Fontes de energia como petróleo (35%), carvão (23%) e gás (21%) esgotar-se-ão neste século. Reservas escassas e extração difícil remeterão os preços aos píncaros. Para apimentar a análise, a principal região produtora de petróleo é politicamente instável, sendo temerário depender dos humores do Oriente Médio para o suprimento de energia e de matéria prima. Entrementes, se Mr. Bush é passageiro, o efeito da poluição é permanente. Combustíveis fósseis constituem a principal fonte de gases que acirram o efeito estufa (metano e gás carbônico). Antes que os poços sequem ou o preço dispare, o mundo terá que encarar o monstro do Aquecimento Global, a fim de evitar o Apocalipse anunciado pelos cientistas.

 

 

 

 

  Energia e poluição
O consumo mundial de energia é de 400 EJ/ano (400 x 1018 joules, equivalendo a 70 bilhões de barris de petróleo). Ao final do século XXI, o consumo será de 2.700 EJ. Logo, nesse período seria necessário retirar 1,5 trilhões de toneladas de CO2, para estabilizar a quantidade desse gás na atmosfera. Alternativamente, atinge-se o mesmo objetivo utilizando energia verde. Os países ricos, grandes consumidores de energia fóssil (75%), são os maiores poluidores do ar. Os EUA respondem por 25% da poluição mundial, devido ao intenso uso de energia fóssil e ao atraso tecnológico de suas principais industrias. Países ricos, de alta densidade populacional ou pobres em energia (Indonésia, China, Índia), serão grandes compradores de energia limpa. Em 30 anos esgotar-se-ão suas reservas de carvão, que será substituído por energia renovável. Em 2018, a Índia consumirá o equivalente a 7 bilhões de barris de petróleo anuais, importando 35% desse volume.

 

Competitividade
Fontes de energia renovável estão se tornando competitivas no transporte, geração de energia elétrica e aquecimento predial. A combustão de biomassa não gera emissão líquida de carbono, pois quantidade igual foi retirada anteriormente da atmosfera, para produção da biomassa. Volume equivalente de carbono é recapturado no cultivo de nova biomassa. Esse é o ciclo natural, ita diis placult – como aprouve aos deuses! Já a queima de combustíveis fósseis - obra dos mortais - descarrega na atmosfera gases que foram aprisionados no sub-solo, há milhões de anos, violentando o ciclo natural do carbono.
  Energia renovável
Energia eólica, solar, hidroelétrica, de biomassa, aproveitamento de ondas e marés dos oceanos são fontes renováveis de energia, nossas velhas conhecidas, e têm vantagens e restrições. Como produzir energia a partir de cata-ventos, ou da radiação solar, no Hemisfério Norte, com vento inconstante, mormente noturno, e radiação de baixa intensidade? A Ciência não encontrou fórmulas para armazenar energia elétrica, em grande quantidade e por longo tempo, sendo a produção de eletricidade determinada pela demanda de cada momento. Os países ricos têm outras restrições: a produção de biomassa exige enormes extensões de terra e possibilidade de produção contínua, sem competir com a agricultura de alimentos – inconciliável para eles! In fine, não existe uma solução única para o problema mas, como Deus é brasileiro, levamos enorme vantagem sobre outros países, e a agricultura de energia será o principal componente do nosso agronegócio. O enfoque deve ser o da mudança progressiva da matriz, incorporando fontes renováveis de energia, ao tempo em que se investe em duas outras largas avenidas: melhorar a eficiência da produção, do transporte, da conversão e do consumo de energia, e criar uma cultura radical de poupança de energia.

 

Paz e Amor

Décio Luiz Gazzoni

Duda Mendonça é um gênio do marketing político. Cunhou o bordão "Lulinha Paz e Amor" para isolar o então candidato José Inácio Lula da Silva da "briga de foice no escuro" por uma vaga no segundo turno. Apesar de não interferir no resultado da eleição (a maioria do eleitorado já havia decidido votar contra o Governo), o slogan néo-hippie plasmou-se no inconsciente nacional como sinalizador do modus operandi do Governo. Por exemplo, ao criticar a invasão do Iraque, Lula foi só Paz e Amor, em contraposição ao Bush Guerra e Ódio.   Paz e Amor no Campo
Um dos símbolos do movimento hippie era a vida no campo, que precisa ser encarnado no Governo e na sociedade brasileira. Após a ressaca das eleições, o MST retomou sua senda de invasões de propriedades agrícolas. Julgando deter a prerrogativa da nomeação de gerentes do INCRA, também invadiu as sedes do órgão onde não impôs o gerente de sua escolha. Ao assumir publicamente essa condição, cada vez mais o MST mostra sua verdadeira face: trata-se de um movimento político e não de um movimento social. Legítimo enquanto movimento, eis que a Constituição garante a livre associação, essa legitimidade se esborroa ao apelar para a violência e a afronta ao estamento legal, mormente o dispositivo constitucional que garante a propriedade (art 170, II).
  Ação e Reação
A terceira Lei de Newton postula "A toda ação corresponde uma reação, com a mesma intensidade, mesma direção e sentido contrário". Corolário dessa lei da física se aplica às interações políticas e sociais, porém nada garante a intensidade das reações e contra-reações. Se alguém imaginava proprietários rurais contemplando o seqüestro de seu patrimônio, de forma passiva, que faça analogia com outros expropriados: como reagiria o dono de apartamento invadido por terceiros; o gerente de banco assaltado; o dono de supermercado saqueado; o proprietário de automóvel roubado; o governo frente à sonegação fiscal; a criança de quem se tira o pirulito, e assim por diante.

Milícias
Os produtores rurais buscam fórmulas para garantir a integridade patrimonial (reação), muitas delas tão condenáveis quanto a invasão (ação). Milícias são formadas, até parodiando um grupo criminoso (PCC); proprietários acampam na beira da estrada, em vigília em frente a acampamentos do MST; lideranças reúnem-se em Cuiabá para organizar as formas de luta. Assediado pela mídia, o Ministro Chefe da Casa Civil (José Dirceu) faz coro com o Presidente do PT (José Genoíno) afirmando que as invasões devem ser evitadas a todo o custo e, caso aconteçam, as determinações judiciais devem ser cumpridas de imediato.
  Contramão
É lastimável assistirmos a essa recidiva do MST quando o PIB agrícola atinge seu pico histórico (R$ 424 bilhões, crescimento de 8,4%), quando o Brasil se encaminha para ser o maior exportador de soja do mundo e, na seqüência, o seu maior produtor. Quando o setor primário se revela o mais dinâmico da economia, sustentando nossa balança comercial no azul e garantindo o crescimento positivo do PIB, gerando e distribuindo renda, criando novos empregos. A Nação brasileira deveria unir-se em torno de sua grande vantagem competitiva, ao invés de dispersar energia e recursos - que são insumos da produção - para apaziguar o ambiente produtivo
  Emprego e renda
O maior problema social do Brasil não é a fome ou a violência. A matriz dos problemas sociais está na falta de emprego e renda e na sua injusta distribuição. Seguramente, teríamos menos sem-terra legítimos, se pequenos agricultores não houvessem sido expulsos de sua terra. Parcela da solução está na reforma agrária. Que deve atentar para a integridade patrimonial e para a função social da terra. Porém, deve, também, ter os olhos postos nos acordos internacionais firmados pelo país. Deve assegurar competitividade e rentabilidade, permitindo ao cidadão viver com dignidade do fruto de seu trabalho e de sua terra. Nas condições atuais, isso significa portentosos investimentos em infra-estrutura (transporte, armazenagem, centrais de abastecimento, portos, energia) e apoio ao produtor (pesquisa, assistência técnica, educação, cooperativismo). Como essa solução é cara e demanda muito tempo, talvez a sociedade tenha que subsidiar o agricultor sem terra, legitimamente vocacionado, até que adquira competitividade para andar com as próprias pernas. Essa deveria ser a discussão estratégica do momento e não como evitar invasões ou expulsar invasores de terra.

Dia de ouvir Roberto Rodrigues

Décio Luiz Gazzoni 

Durante a Exposição Agropecuária de Londrina, a Associação das Mulheres de Negócios e Profissionais de Londrina (BPW-L) e a Embrapa Soja tem propiciado oportunidades para discussão de temas palpitantes, relativos à agropecuária. Há 4 anos, o Ministro Turra debateu a matriz da renda agrícola; depois foi a vez dos transgênicos; no ano passado discutiu-se clonagem. Hoje à tarde teremos uma luneta assestada para o futuro. Novo Governo, novas idéias, novos rumos, quem melhor para discutir com o produtor que a maior autoridade da Agropecuária Brasileira? E, sem pieguice, debite-se a expressão “maior” apenas parcialmente ao fato de Roberto Rodrigues ser Ministro da Agricultura. O restante do crédito advém de sua liderança inconteste, sua experiência, seu conhecimento e da contribuição que já prestou ao desenvolvimento da agropecuária nacional.    Agenda da agricultura
Pedimos ao Ministro que, em sua preleção, nos descortine o cenário que lhe parece mais razoável, para os próximos anos. Essa tarefa, nada singela, implica em desenvolver diversos temas, caudatários ao rumo principal dos agronegócios. Antecipar o contorno provável desses temas significa conferir um grau maior de segurança ao agropecuarista, que é um empresário que necessita administrar, constantemente, os riscos que inerentes ao seu negócio. 
  Seguro Agrícola
Administrar riscos remete ao seguro agrícola, que constou das propostas de campanha do candidato Lula, bem como do candidato Roberto Requião. Do palanque à prática é a ponte que Roberto vai elucidar em sua apresentação. Como uma promessa de campanha vai virar uma política pública, como o agricultor pode contar com os mesmos mecanismos de proteção de seus concorrentes de Primeiro Mundo é o que se espera ouvir do Ministro. 

Subsídios
É notória a posição firme do Ministro sobre os subsídios agrícolas concedidos pelos países ricos aos seus agricultores. Para deixar claro que não mandou esquecer o que escreveu antes de ser Governo, Roberto atuou firme para que o Brasil ingressasse com dois pedidos de panel (comitês de arbitragem) junto à OMC. Questiona-se o subsídio americano ao algodão e o subsídio europeu à exportação de açúcar. No caso do algodão, o Brasil passou de exportador a importador da fibra, em menos de dois anos, em decorrência dos subsídios do Governo americano, um absurdo de US$3,2 bilhões. Segundo Roberto Rodrigues “o protecionismo aumenta a distância entre ricos e pobres, gerando a exclusão social, que é a grande ameaça à democracia e à paz”.
  Comércio Internacional
O agronegócio brasileiro necessita transmutar-se de “comprado” para um aguerrido vendedor. Precisamos de uma política agressiva de comércio internacional, conquistando e consolidando mercados, abrindo novas oportunidades. Para tanto, urge cumprir nossa lição de casa como manter um sistema de sanidade agropecuária ombreado àqueles dos países de Primeiro Mundo e implantar um sistema de certificação e rastreabilidade que confira credibilidade aos nossos produtos. Como atingir esses objetivos será uma das abordagens da alocução do Ministro. 

 

 

Biotecnologia
O início de 2003 foi marcado pela discussão do que fazer com a soja gaúcha, em grande parte proveniente de cultivares transgênicas. Mais do que o tema conjuntural da presente safra, ou mesmo de cultivares de soja tolerantes a herbicidas, vamos ouvir do Ministro um panorama de mais longo prazo. Como serão encaminhadas as políticas públicas referentes à biotecnologia. O que será feito para atender as demandas sociais de mais alimento, de melhor qualidade e melhor preço, como oferecer emprego e renda, tendo como pano de fundo um ambiente produtivo que se delineia cada vez mais dominado pela biotecnologia. Como o Governo encara a questão, qual apoio será dado às instituições científicas, enfim, as ações que definirão o rumo futuro do agronegócio brasileiro. 
  Competitividade
Como agricultor (e dos bons!) o Ministro sabe que o produtor não está interessado em cultivar transgênica ou em clone de bezerro apenas pela inovação. Está interessado em competitividade, em rentabilidade, em sustentabilidade de seu negócio. Assim como o governo deve estar preocupado com as quatro vertentes da agricultura sustentável: ambiental, econômica, social e comercial. Ninguém melhor para elaborar essa questão que o Ministro Roberto Rodrigues. Quem participar do evento na Sociedade Rural, seguramente, sairá melhor apetrechado para a faina do dia a dia de produtor rural.

 

Biotecnologia e a proteção contra as pragas

Décio Luiz Gazzoni

    Quando se discute biotecnologia, um dos questionamentos recorrentes refere-se à prioridade da aplicação de recursos públicos para o desenvolvimento de pesquisas que, à primeira vista, não se desdobram em benefícios diretos à sociedade.

    Mahatma Gandhi, um dos maiores estadistas de todos os tempos, enfrentou o mesmo questionamento ao conferir prioridade aos investimentos em Educação e C & T, em um país pobre, com elevado déficit de políticas sociais, como a Índia. Gandhi afirmava que as alternativas eram: algum sacrifício no presente para viabilizar o futuro almejado pela sociedade; ou o populismo das políticas conjunturais, sacrificando qualquer esperança de futuro. Pessoalmente, entendemos que o investimento em Ciência e Tecnologia de boa qualidade sempre vai se justificar, mesmo que o retorno prático dos avanços científicos ocorra no médio prazo.

 

 

    O corolário desta postura é que, se o Brasil não acompanhar par i pasu o estado da arte da C & T, verá seus competidores se distanciarem o suficiente para não serem alcançados, condenando-nos ao papel de país periférico, com comprometimento da nossa capacidade de desenvolvimento, progresso, geração de emprego e renda e ocupação do espaço comercial. A energia hoje voltada para criticar os investimentos, feitos por grandes multinacionais e por governos dos países do Primeiro Mundo, deve ser canalizada para alertar a sociedade brasileira para que investimentos semelhantes sejam efetuados, por empresas privadas e institutos públicos brasileiros.

   Para ilustrar a importância do investimento em C & T como base para ações de pesquisa, desenvolvimento, inovação e empreendimentos de cunho tecnológico, analisemos uma das pesquisas de maior divulgação na mídia em 2002: o sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, causadora do amarelinho dos citrus.

 

 

 

 

Opção estratégica

Quando a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP) optou pela indução de estudos na área de genômica, seus estrategistas tinham muita clareza da importância do domínio do ferramental biotecnológico para o desenvolvimento de tecnologias de ponta, seja na agricultura ou na medicina. O investimento inicial na rede de pesquisa denominada ONSA (Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis) foi de valor ínfimo, não interessando o seu quantitativo financeiro.

 

 

  Ínfimo porque, a partir do desvendamento do código genético da Xylella e do funcionamento de cada um dos genes da bactéria, o Brasil acumulou um patrimônio de conhecimento na fronteira da ciência de valor inestimável. O estudo básico permitiu investir na elucidação do código genético de duas outras bactérias: a Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, praga que historicamente assola a nossa citricultura, e a X. campestri, que ataca a couve.

 

 

 

A escolha do gênero Xanthomonas não ocorreu por acaso, porém deveu-se ao fato de que espécies desta bactéria já foram encontradas atacando quase 400 diferentes vegetais, entre eles o tomate, o feijão, o arroz, a mandioca, o algodão, o milho, a cana, o trigo e a soja.

Os cientistas compararam o genoma e a funcionalidade das duas bactérias, com o objetivo analisar as diferenças de forma de ataque aos hospedeiros, buscando os pontos vulneráveis dos patógenos e a relação com o respectivo DNA. Decifrado este enigma, estará aberto um campo fértil para o controle destas pragas agrícolas.

A pesquisa básica

Os pesquisadores estudaram apenas 100 entre os 4.322 genes da X. citri e os 4.079 da X. campestri, e notaram que, apesar da proximidade filogenética, a X. citri sobrevive sobre a epiderme dos ramos ou dos frutos da laranjeira, causando o cancro cítrico, enquanto a X. campestri se instala nos tecidos internos do repolho e circula através do xilema da planta.

 

 

 

  Se existem hábitos diferentes, então eles são devidos a genes diferentes. Baseado nessa teoria, foram identificados os genes que permitem às bactérias penetrarem nos tecidos dos hospedeiros, de maneira diferente para cada uma delas. Também foi estudada a preferência ou atração das bactérias em relação a determinadas substâncias químicas produzidas pelas plantas.

 

 

 

  Os cientistas concluíram haver, pelo menos, 200 genes na espécie X. campestri que não são encontrados na X. citri, que poderiam estar relacionados com as interações entre as bactérias e seus hospedeiros. Se comprovada a hipótese, os cientistas poderiam investir na inibição ou inativação dos genes, ou das substancias por eles produzidas, evitando que as bactérias pudessem estabelecer-se sobre o seu hospedeiro. Completado o estudo básico, três grandes avenidas tecnológicas foram descortinadas, como possibilidades de controle dessas bactérias.

Rota 1: inibição do ingresso

Um gene denominado PTHA, presente em X. citri e ausente em X. campestri, atua na proliferação anormal das células do hospedeiro, formando o cancro observado nas plantas cítricas. Já em X. campestri foram observadas diversas enzimas que digerem a parede celular das plantas, que é o efeito observável do seu ataque.

 

  O passo seguinte será descobrir qual o gene (ou agrupamento de genes) que comanda a produção das enzimas responsáveis pela destruição da parede celular. Posteriormente, será necessário descobrir substâncias químicas que bloqueiem estas enzimas. Sem o auxílio das enzimas que digerem a parede celular, a bactéria não terá a habilidade de contaminar os tecidos vegetais, impossibilitando seu estabelecimento no hospedeiro.

Rota 2: bloqueio da defesa

O ataque de um patógeno a um vegetal deflagra mecanismos que identificam as substâncias químicas que caracterizam o invasor. Ato contínuo, a planta produz ou mobiliza antídotos para reagir ao ataque, seja evitando o ingresso do agressor, imobilizando-o, destruindo-o ou impedindo que este se desenvolva ou reproduza. Se bem sucedido nesta missão, o sistema imunológico das plantas protege o hospedeiro contra os patógenos.

Cada espécie de Xanthomonas possui hospedeiros específicos. A hipótese é que, se cada espécie da bactéria produz substâncias químicas próprias, que disparam os mecanismos do sistema imunológico de algumas plantas - mas não tem o mesmo efeito em outras - então essas substâncias têm o poder de enganar as "sentinelas" das plantas, abrindo suas defesas para o ataque da bactéria.

 

 

 

Os genes responsáveis por estas substâncias são denominados "genes de avirulência". Eles não precisam ser os mesmos que codificam para as substâncias causadoras da patogenicidade. Porém, no caso da X. citri, o PTHA também é o gene responsável pela avirulência. Para provar esta hipótese, os cientistas transferiram o PTHA para o DNA de outra espécie de Xanthomonas, o que impediu que ela infectasse o seu hospedeiro natural (o arroz), porque o gene acionou as defesas da planta. As substâncias responsáveis pela avirulência são proteínas, como é o caso do antígeno-O. Para a X. citri foram identificadas dez enzimas que produzem antígenos-O os quais, quando não são reconhecidos pelas defesas da plantas, possibilitam a infecção.

Como o leitor percebeu, o próximo passo será descobrir substâncias que bloqueiem a ação dos genes, inativem as enzimas ou impeçam a atuação das substâncias que "enganam" a planta. Se a planta reconhecer o agressor, existe sempre a possibilidade de o seu sistema imunológico obstruir a ação do patógeno.

Rota 3: proliferação

Considerando que a X. citri ataca a epiderme e a X. campestri atua no interior dos tecidos, os cientistas estudaram a bioquímica desses processos e a sua relação com determinados genes. Descobriu-se que a X. campestri obtém o nitrogênio através de nitratos e nitritos do solo, utilizando o nitrogênio da seiva das plantas apenas marginalmente. Já a X. citri produz enzimas que "quebram" proteínas em partes menores (peptonas e peptídios), as quais são absorvidos pela bactéria com a ajuda de outra substância química, denominada transportador (PPA).

 

 

Conseqüentemente, o próximo passo será descobrir substâncias que inibam a produção ou a atividade das enzimas que digerem as proteínas, a síntese ou o a ação do PPA. Na presença dessa substância, a bactéria não terá como obter seu suprimento de nitrogênio, prejudicando seu desenvolvimento e sua reprodução, comprometendo sua habilidade patogênica, podendo eliminar completamente a bactéria da planta.

Isso somente será atingido se o código genético das plantas contiver os genes que codifiquem para as substâncias que atuam no PPA ou nas enzimas de digestão das proteínas.

Pelo exposto, demonstramos a importância da pesquisa na fronteira da ciência, que sempre será a base de inovações tecnológicas. Entretanto, este caminho somente estará aberto quando ocuparem postos chaves pessoas com privilegiada visão de futuro, como tem acontecido com os dirigentes da FAPESP.

 

Biotecnologia agrícola: Impactos sobre a oferta de alimentos, a saúde pública e o meio ambiente

Décio Luiz Gazzoni

A última década do século passado trouxe para o primeiro plano das discussões dos cientistas, e da sociedade civil, a importância crescente da biotecnologia e sua tendência para substituir a física e a química, como a ciência que dominará o cenário científico e tecnológico do futuro próximo. Em especial, seus impactos são mais esperados nas ciências agrícolas e da saúde, envolvendo desde a nutrição à terapia, passando pelo vestuário e pela oferta de energia. Mudanças tão dramáticas exigem um contínuo debate para que a sociedade possa encontrar um rumo que tenha o menor custo de trade-off, ou seja, que as vantagens de substituição tecnológica superem os seus eventuais aspectos negativos.   Durante o II Congresso Brasileiro de Soja (Foz do Iguaçu, Junho de 2002) a Dra. Pandya Lorch (IFPRI, Wasington-DC) chamou a atenção para uma estimativa macabra: 800 milhões de pessoas no mundo não tem o que comer! Não se trata apenas de déficit nutricional ou dieta desbalanceada: é fome mesmo, falta de qualquer coisa para encher o estômago. Para essa estatística, felizmente, o Brasil contribui muito marginalmente, pois a fome braba, aquela que mata, concentra-se na África, ao sul do Saara, e em regiões da Ásia.

 

 

  A Dra. Pandya lembrou que, na raiz do problema estão a pobreza e o desemprego (ou a falta de alguma fonte de renda), decorrentes de baixa escolaridade e falta de outras condições de desenvolvimento. Citou estatísticas da UNICEF dando conta que, cerca de 12 milhões crianças em idade pré-escolar vão a óbito, anualmente, por fome e enfermidades causadas por deficiências nutricionais.

 

 

 

Fome e competitividade

Por paradoxal que possa parecer, 80% da fome do mundo concentra-se nas áreas rurais, onde a exploração agrícola não é suficiente para alimentar as pessoas que dela dependem, menos ainda para produzir excedentes comercializáveis que possam atender outras necessidades como vestuário, medicamentos, educação, etc. O paradigma da agricultura moderna exige que uma de três condições sejam preenchidas: ou o agricultor cultiva uma área de terra suficientemente grande para ganhar escala, pela extensão da propriedade; ou dedica-se à produção de culturas ou criações de alto valor intrínseco; ou agrega valor à sua produção antes da comercialização.   A única alternativa à margem dessa tríade é o subsídio da sociedade, para manter o produtor sem competitividade no negócio, como fazem os governos dos EUA, da Europa ou do Japão. Nesse caso, há necessidade do atendimento de duas premissas: em primeiro lugar, cumpre convencer a sociedade local que uma de suas prioridades é conferir amparo a esses produtores, valendo-se de recursos tributários para subsidiá-los e evitar que sejam expulsos da atividade agrícola. Em segundo lugar, há que compatibilizar essas ações com os acordos internacionais, especialmente o da OMC, que veda a utilização de subsídios à agricultura. Bem, ao menos veda para os países pobres, sempre obrigados a cumprir a Lei.

Fome e biotecnologia

É absolutamente inútil e deslocada a discussão a respeito da questão: a biotecnologia vai acabar com a fome no mundo? O fulcro é outro: como garantir competitividade e rentabilidade ao negócio agrícola. O produtor rural não está, ex-ante, preocupado com biotecnologia, com cultivares transgênicas ou com animais clonados. Seu foco está na sustentabilidade de seu negócio e vai buscar modelos tecnológicos que satisfaçam seus requerimentos de rentabilidade.   É consensual que o problema da fome não é devido à oferta de alimentos mas à injusta distribuição de renda entre os países, ou no seio de cada país. Portanto, o modelo tecnológico de produção não possui o condão de acabar com a fome. Esforços de países isolados ou multilaterais, envolvendo diversos países e organizações internacionais, buscam mitigar o problema da fome. Não é do escopo desse artigo analisar a falta de renda para aquisição de alimentos, embora uma de suas causas seja o excessivo protecionismo agrícola dos países do Primeiro Mundo, retirando dos países pobres a pilastra que poderia alavancar seu desenvolvimento. Portanto, vamos imaginar, hipoteticamente, que, em um passe de mágica, haja disponibilidade de recursos financeiros para que todo o ser humano na face da Terra possa se alimentar adequadamente.

O desafio da produção

Como só tínhamos direito a um pedido ao gênio da garrafa, agora o desafio passa a ser a produção de alimentos para atender a essa demanda, dita represada ou potencial, posto que o dinheiro para comprá-la existe. Considerando o parâmetro de 600kg/pessoa/ano de grãos, conforme adotado pela FAO como indicador de adequado atendimento nutricional da população, em curto espaço de tempo o mundo deveria produzir 500 milhões de ton de grãos, além do que já produz atualmente. Ou, para melhor entendimento, acrescentar à produção mundial, a cada ano, o equivalente a cinco safras anuais brasileiras!   De repente precisaríamos aumentar em 20% a produção mundial de arroz, trigo, milho, feijão, soja, além de mandioca, batata, bata doce, bananas, hortaliças, carne, etc. Esse incremento pode ser obtido por ampliação de área, maior produtividade, redução de perdas ou, mais provavelmente, por uma combinação dos três fatores. A análise deve ser feita tendo em mente a contribuição da biotecnologia para atender a essa demanda incremental, que é o foco desse artigo.

Onde plantar

As áreas agricultáveis de alto valor (planas, férteis, com disponibilidade de água, com facilidades de transporte) estão em vias de esgotar-se. Já não estão disponíveis nos países de Primeiro Mundo, em países populosos e com restrições edafoclimáticas, como Índia ou Indonésia e aproximam-se do limite em outros países importantes, como Argentina ou China. O Brasil é um dos raros países do mundo onde ainda existem áreas nobres para incorporação ao processo agrícola. Ressalte-se que, no curto prazo, a agricultura de energia, de alto valor agregado e cuja demanda concentra-se nas sociedades de altíssimo poder aquisitivo, passará a disputar o espaço geográfico da produção agrícola.  

Restam as áreas marginais, degradadas, distantes, com baixa fertilidade, salinas, sujeitas a intempéries climáticas e estresses abióticos. O custo de incorporação dessas áreas, posta a tecnologia atual é muito alto, exigindo do "gênio da garrafa" que aumente a renda per cápita, pois o custo dos alimentos seria maior. Igualmente, a redução de perdas na lavoura, na colheita e no pós colheita, dependem, cada vez mais, de avanços tecnológicos dadas as limitações atualmente existentes. Finalmente, os "break throughs" de produtividade tornam-se mais escassos, conforme os cientistas atingem as fronteiras do paradigma tecnológico dominante. São esses fatores, isolados ou integrados, conjuntamente com a necessidade de produzir a baixo custo, que trazem a biotecnologia para o centro dos debates. A pergunta que compete à nossa geração responder é: como poderemos atender a demanda de alimentos, através de uma agricultura sustentável, que atenda os requisitos sociais, ambientais, econômicos e comerciais do presente, sem comprometer as gerações futuras?

 

Melhoramento tradicional e biotecnologia

Historicamente, o processo de melhoramento agrícola consistiu em selecionar, dentre os milhões de espécies que compõe a biodiversidade, menos de uma centena delas para cultivo intensivo. Mais de 90% da produção agrícola mundial depende de menos de duas dezenas de espécies vegetais e meia dúzia de animais. Desde tempos imemoriais que o Homem seleciona os melhores indivíduos, das espécies que lhe interessam, para sua propagação. No começo, o processo era rudimentar e não ultrapassava a seleção de plantas ou de grãos para plantio. Posteriormente, com a descoberta dos processos reprodutivos e dos mecanismos de herança, generalizou-se a prática dos cruzamentos, com posterior seleção, para apressar o processo natural de introdução e fixação de características de interesse.   Por exemplo, a Revolução Verde, que rendeu o Prêmio Nobel da Paz ao Agrônomo Norman Borlaug, baseou-se na criação de variedades anãs de cereais, com alta capacidade de resposta a fertilizantes, e que permitiam a colheita mecânica.

 

 

Inovação

A biotecnologia inova em dois aspectos: primeiramente no ferramental, permitindo maior controle e maior celeridade no processo de melhoramento. Em segundo lugar, desaparecem as barreiras para intercâmbio de caracteres entre seres vivos. Teoricamente, características presentes em animais podem ser introduzidas em plantas e vice-versa. Genes de fungos ou bactérias podem ser transportados para as plantas e os vírus ou bactérias podem receber genes de plantas ou animais.

Uma das vantagens do uso de ferramentas biotecnológicas é a possibilidade de reverter situações tidas como limitantes. Por exemplo, as estatísticas demonstram que, na década de 70, a produtividade agrícola cresceu 3% ao ano, fortemente lastreada nos conceitos da Revolução Verde. Já na década de 90 a produtividade cresceu apenas 1% ao ano, o que pode indicar o esgotamento do paradigma tecnológico em uso. Observam-se também perdas crescentes por fatores abióticos, como a seca e pela salinização de áreas irrigadas. O estreitamento da base genética das plantas cultivadas e a pouca disponibilidade de plantas com compatibilidade para reprodução sexuada, que possam transferir caracteres de interesse para a agricultura, acentuam a vantagem da biotecnologia.

 

 

Adicionalmente, o modelo agrícola baseado em elevado consumo de insumos agrícolas, vem sendo fortemente questionado. De uma parte, procrastinam-se os efeitos colaterais do uso intenso de agrotóxicos e fertilizantes. Por outro lado, existe a consciência da finitude dos recursos, como as jazidas de fertilizantes e do petróleo. A biotecnologia, ao incorporar características de resistência a pragas e de maior capacidade de extração e maior eficiência de utilização de nutrientes, teria o condão de mitigar o problema.

Além das características agronômicas, espera-se da biotecnologia que permita melhorar as características de qualidade dos cultivos, incrementar as propriedades nutricionais e possibilitar a produção de substâncias de interesse da medicina, em substituição às indústrias químicas.

A biotecnologia no dia a dia da agricultura
 

A base da Revolução Verde foi um conjunto de genes (Norin-10), que reduzem a estatura das plantas, por sua insensibilidade às giberelinas. Foram identificados dois genes recessivos (Rht-1 e Rht-2) e um gene semi-dominante (Rht-3), presentes no cromossomo 4 do trigo. Além de produzir plantas mais fortes, eretas e baixas, esses genes também conferem alta resposta a fertilizantes, aumentando, sensivelmente, a produtividade da cultura. Esse aumento decorre da redução do alongamento das células nos tecidos vegetativos, possibilitando à planta direcionar os fotossintatos para as suas partes édulas.   Um estudo publicado na revista Nature, em 1999, demonstrou a viabilidade da expressão desses genes em outras culturas, além do arroz e do trigo, resultando nos mesmos benefícios. Além dos genes Norin, existem dezenas de possibilidades sendo investigadas nos laboratórios, com o objetivo de romper os tetos de produtividade de plantas cultivadas.

 

 

 

  A geração de cultivares resistentes a pragas é uma das áreas de maior concentração de pesquisa científica. Um relatório da Academia de Ciências dos Estados Unidos, publicado em 2000, aponta para uma redução de 1,000 toneladas de inseticidas em 1999, relativamente a 1998, resultantes do uso de cultivares transgênicas, em 2 milhões de hectares. O evento mais conhecido é a introdução de genes que codificam para a toxina do Bacillus thuringiensis em plantas como soja ou milho. A idéia é incorporar o controle biológico na própria planta, dispensando o conjunto de atividades relativas ao controle da praga.

Resistência a doenças

A resistência a doenças do sistema radicular permitirá viabilizar, em definitivo, o sistema de cultivo mínimo e plantio direto, reduzindo o impacto ambiental do processo agrícola. Existem centenas de genes sendo estudados, os quais conferem resistência a insetos, bactérias, fungos, vírus ou nematóides, para introdução em plantas cultivadas. Exemplos marcantes são representados pelas variedades de mamão resistentes ao Ringspot vírus, lançadas em 1996. Variedades de batata resistentes a fungos, e de arroz resistente a doenças bacterianas, também foram desenvolvidas.   Um dos maiores entraves ao cultivo de arroz na África é o vírus RYMV que, além de matar as plantas, torna as sobreviventes extremamente suscetíveis a infecções fúngicas. A impossibilidade de resolver o problema, pelo melhoramento tradicional, incentivou os cientistas a desenvolver cultivares transgênicas, as quais estão prestes a serem introduzidas para cultivo. Apesar dos avanços, existe um desafio ainda por superar, referente ao desenvolvimento de resistência das pragas a essas cultivares, o que poderia reduzir a sua vida útil, ensejando a pesquisa de métodos avançados de manejo da resistência.

Tolerância a condições adversas

Os estresses ambientais podem provir de falta ou excesso de água, salinidade excessiva, baixa fertilidade e alta acidez do solo. A análise genômica tem demonstrado que poucos genes controlam cada mecanismo de tolerância das plantas ao estresse hídrico. Estudos recentes acerca da análise das respostas moleculares à seca e outros estresses abióticos, sugerem que a manipulação da expressão gênica e da transdução de sinais moleculares em cultivares transgênicas, pode melhorar consideravelmente a tolerância das plantas à seca e outros estresses.

 

  Em relação à tolerância à acidez do solo, plantas modificadas para produzir teores muito acima do normal de ácido cítrico nas raízes, apresentaram alta tolerância ao alumínio tóxico, sempre presente em solos ácidos. Cientistas chineses isolaram um gene que permite a determinadas plantas sobreviver no ambiente inóspito de solos com alta salinidade. O gene foi transferido para o feijão e o algodão, estando em fase de testes. Genes isolados de Avicennia marina foram clonados e transferidos para serem estudados em outras plantas.O gene gutD, presente na bactéria Escherichia coli foi utilizado para conferir tolerância à salinidade nas plantas de milho.

Nutrição e saúde

Até o momento, o melhor exemplo de melhoria nutricional, com o uso da biotecnologia, é o arroz dourado. O arroz comum não é uma boa fonte de vitamina A. Entretanto, ele é largamente consumido em regiões onde a deficiência de vitamina A causa cegueira em crianças e outros sérios distúrbios de saúde. Estimativas da Organização Mundial da Saúde apontam para cerca de 500.000 casos de cegueira infantil a cada ano, por deficiência de vitamina A.

 

 

 

 

  Os cientistas introduziram, no arroz, dois genes do narciso e um gene de uma bactéria, tornando possível a produção, no endosperma do arroz, de beta-caroteno, o precursor da vitamina A. O processo consta de quatro etapas, valendo-se do geranil difosfato (GGDP), um composto normalmente encontrado no endosperma do arroz antes da maturação, o qual, sob a ação de enzimas que são produzidas pelos genes introduzidos, produz a pró-vitamina A.

 

 

 

 

  A OMS também registra cerca de 400 milhões de casos de mulheres, em idade reprodutiva, que sofrem deficiência de ferro, ocasionando anemia profunda. Mulheres anêmicas grávidas podem abortar o feto ou gerar um bebê natimorto. As crianças sobreviventes também apresentam anemia, baixo peso e alta suscetibilidade a moléstias. Cerca de 20% das mortes de parturientes asiáticas e africanas são devidas à deficiência de ferro. Para enfrentar o problema, pesquisadores desenvolveram cultivares transgênicas de arroz, contendo alto teor de ferro. Para tanto, foram introduzidos genes que codificam para proteínas que se ligam ao ferro e à produção de enzimas que tornam o ferro disponível ao organismo humano, após o consumo do arroz.

Aplicações terapêuticas

Embora existam vacinas para diversas doenças importantes para a espécie humana, elas são caras, difíceis de produzir e aplicar, sendo também difícil garantir a cobertura imunológica da população. Em alguns países, a pobreza é tamanha que até o custo de agulhas e seringas é proibitivo, expondo os cidadãos a diversas doenças para as quais já existem métodos de prevenção e cura. Estudos em andamento mostraram a possibilidade de produzir vacinas e outras substâncias de importância farmacológica, a partir de plantas cultivadas. Utilizando alimentos de largo consumo, como batata e banana, os cientistas já conseguiram produzir vacinas contra importantes doenças gastro-intestinais.   Mais recentemente, foi possível incorporar no arroz e no trigo um gene que produz uma substância que reconhece, diferencialmente, células de órgãos como pulmão, seio e cólon, com enorme potencial de diagnóstico e terapia de tumores desses órgãos. Se considerarmos o inesgotável potencial da biodiversidade, em termos de substâncias farmacologicamente ativas, a biotecnologia pode ser a grande ferramenta para implantar, em definitivo, o conceito de alimentos funcionais, ou seja, alimentos que, além de cumprir a sua função nutricional, também atuam como redutores de risco, prevenindo e curando doenças do ser humano e de animais

Riscos ambientais e à saúde
Provavelmente nunca houve um caso de desenvolvimento tecnológico que tenha sido tão estudado, sob o aspecto dos riscos ambientais e à saúde humana, quanto os OGMs. Desde o início de seu desenvolvimento, nos anos 70, a segurança dos transgênicos vem sendo questionada, em especial quanto aos seguintes itens:

    1. Presença de substâncias que causam alergia;
    2. Presença de substâncias tóxicas aos organismos que utilizem OGMs como alimentos;
    3. A utilização da técnica de resistência a antibióticos, como marcador no processo de introdução de genes;
    4. A dispersão dos genes introduzidos em um organismo em outras espécies não alvo.
Atualmente, são cultivados cerca de 60 milhões de hectares de plantas transgênicas no mundo. Apenas com relação à soja RR, estima-se haverem sido produzidas e consumidas mais de 200 milhões de toneladas, sem que haja notícia de um único relato de efeito deletério do consumo de alimentos derivados de plantas transgênicas. Entretanto, embora a preocupação possa parecer exacerbada ou paranóica, o excesso de zelo se justifica não apenas pelo avanço da biotecnologia, porém pela crescente exposição do ser humano, e de outros organismos, a novas tecnologias, potencialmente perigosas que, eventualmente, podem apresentar efeito sinérgico ou cumulativo.   É importante ter em mente que, muitas das plantas, atualmente utilizadas como alimentos (plantas não transgênicas), contêm substâncias que são tóxicas ou alergogênicas, embora estejam presentes em baixos teores. O potencial toxicológico ou alérgico de OGMs deve ser permanentemente escrutinado, em especial quando da introdução de novas proteínas, para garantir a segurança dos alimentos.   Embora não existam evidências de risco à espécie humana, a técnica de uso de genes de resistência a antibióticos, como a kanamicina, deve ser progressivamente substituída. Esse antibiótico ainda é utilizado na medicina para tratamento de infecções do tecido ósseo, das vias respiratórias, da pele, além de infecções dos aparelhos gastro-intestinal e urinário, entre outras. Pesquisas recentes demonstraram a possibilidade de remover os marcadores genéticos, antes da fase final do desenvolvimento de cultivares transgênicas comerciais.

Uma comissão de alto nível, constituída pela Academia de Ciências dos Estados Unidos, formulou três perguntas que devem ser necessariamente respondidas, quando se analisa a segurança ambiental de OGMs:

  1. O cultivo de uma variedade transgênica, com resistência a uma determinada praga, pode exacerbar o surgimento de novas pragas, de forma mais acentuada que os métodos tradicionais?
  2. Caso algumas características desejáveis em plantas cultivadas (resistência a pragas, tolerância a estresses abióticos) sejam transferidos para variedades selvagens ou espécies não cultivadas, haverá uma expansão no nicho dessas espécies, que poderá resultar na supressão da biodiversidade nessa área?
  3. O potencial de ampliação da área agricultável propiciado pela biotecnologia, incorporando áreas marginais, degradas e atualmente inaptas, pode ser conduzido de maneira sustentável?

La critique est aisée...
...et la art est difficile! A crítica é fácil, a arte é difícil é um verso de Philippe Néricault Destouches, na sua comédia Le Glorieux (1732), em que chamava a atenção que falar é fácil, fazer é que são elas. Portanto, mais que discursos de palavras ao vento e crítica pela crítica, é importante analisar que, historicamente, pobreza e mudanças estruturais na área rural sempre tiveram como conseqüência a degradação ambiental. A incorporação de ferramental biotecnológico deve ser efetuada sob a óptica da preservação e melhoria das condições sociais e ambientais. E, acima de tudo, temos que ter em mente as perguntas cruciais que devem ser respondidas: a biotecnologia contribui para aumentar a competitividade e a rentabilidade do agricultor? Ela é compatível com uma agricultura sustentável? Os seus impactos sociais e ambientais são equivalentes ou menores que suas alternativas?

 

Box

Propriedade intelectual e investimento em pesquisa

Mais que em qualquer outra era, o avanço científico e tecnológico está fortemente associado à proteção da propriedade intelectual. É curioso observar a postura de países, em especial o Japão e a Suíça que, no passado recente, adotaram como estratégia de desenvolvimento e de acumulação de capital e riqueza, a cópia tecnológica e o não reconhecimento de patentes. São os mesmos países que hoje abominam essa postura, quando argüida por países pobres, como ocorreu recentemente em Doha (Qatar), durante a Rodada de Negociação da OMC, em que o Governo Brasileiro propôs a flexibilização da proteção patentária de medicamentos, em casos de epidemias e sérias ameaças à saúde pública.   A indústria biotecnológica tem na propriedade intelectual a sua pilastra básica. Esse é um risco dos tempos modernos pois, caso o paradigma biotecnológico seja o dominante no futuro próximo, existe o risco de uma recidiva colonialista, agravando o fosso entre ricos e pobres, emergentes e desenvolvidos. Além da proteção deslavada do mercado, através de grotescos subsídios, os países ricos poderão dispor de mecanismos tecnológicos de controle do mercado. A menos que outros países, Brasil entre eles, compartilhem do estado da arte e do domínio tecnológico para competir com os países centrais. Isto requer políticas firmes e agressivas de Ciência e Tecnologia e de Desenvolvimento Industrial.

Domínio público

Ao contrário dos avanços na área mecânica ou química, de vida média mais longa, os produtos derivados de biotecnologia (à semelhança da informática) serão caracterizados pela vida média curta, pois será relativamente fácil, rápido e barato promover "upgrades" tecnológicos. Aliás, o mote da inovação é, justamente, o de provocar a migração para novos produtos, marginalmente diferenciados, porem de custo maior, depreciando o produto anterior. Assim, ao vencer o período de proteção da patente, não haverá um "bem público" que possa ser copiado.   Para melhor entendimento, compare-se a área de medicamentos da química fina tradicional, que permite a produção de genéricos ao final da proteção, com um "software" produzido em 1980, cuja proteção está por vencer. Alguém está interessado em aproveitar um hipotético final de patente do sistema operacional DOS 1.0, desenvolvido por Bill Gates, cujos 25K podiam ser armazenados nos vetustos disquetes de 8 polegadas? A versão completa do último sistema operacional da Microsoft, o Windows XP, ocupa quase 1GB, não cabendo em um único CD. A próxima versão do Office ocupará 12 CDs!

Royalties e soberania

Considere-se que, caso objetivos sociais e ambientais façam parte das diretrizes da pesquisa biotecnológica, o incentivo ao seu desenvolvimento através de universidades e de institutos públicos é fundamental. Nesse caso, a proteção da propriedade intelectual permite a socialização do benefício, a competição com grandes corporações e um recurso de re-investimento na pesquisa.   Convém lembrar que os dois principais eixos da biotecnologia são a medicina e a agropecuária. As empresas privadas podem manter um leque de negócios que inclua os dois segmentos, enquanto institutos públicos, normalmente, são mais pontuais e focados. Essa restrição diminui a capacidade competitiva e o portfólio de oportunidades, o que torna ainda mais importante a participação de fundos públicos no financiamento da pesquisa.

Privado ou social

O pleno exercício dos ditames da proteção intelectual, por parte de órgãos públicos, é fundamental para evitar a privatizacão do investimento social, pois uma organização privada pode, a partir de um material genético de ampla aceitação, produzido por um ente público, agregar uma característica importante, através de biotecnologia e, em pouco tempo, deslocar o ascendente do mercado. Isso é perfeitamente possível, pois uma das características da biotecnologia é a rapidez e a precisão da introdução de novas características em matérias genéticos, sem a necessidade de um longo tempo de cruzamentos e retrocruzamentos, ou o recurso a um grande número de descendentes, para obter a combinação gênica desejada.   A adesão a convenções e tratados internacionais implica em aceitação de regras rígidas, impostas pelos países centrais e, obviamente, desenhadas para defender os seus interesses. A adesão à OMC implica, necessariamente, na aceitação concomitante das disposições do TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), o acordo que disciplina as regras de patentes e propriedade intelectual nas transações do comércio internacional. No caso específico da agropecuária, é importante ter em conta as disposições do CBD (Convention on Biological Diversity), que disciplina o acesso aos recursos da biodiversidade.

Proteção tecnológica

Além da proteção legal, os detentores de inovação na fronteira da ciência buscam fórmulas mais seguras de proteger seus direitos, como já vem ocorrendo com o milho híbrido, porém de forma mais sofisticada. Apesar de ainda requerer muito investimento em pesquisa e desenvolvimento, em 1995 foi anunciado o desenvolvimento de um processo denominado GURT (Genetic use restriction technology) e difundido na mídia como "terminator". O processo – registrado no Serviço Americano de patentes sob # US5723765 - consiste no desenvolvimento de plantas transgênicas contendo determinados genes, que seriam ativados (ou, alternativamente, desativados) através da exposição à determinada substância química.   De acordo com o cientista que a desenvolveu (Dr. Merlin Oliver, Delta and Pine Land Co., Scott, MS – USA), trata-se de um complexo de três genes, em que um deles produz uma proteína que interfere com o desenvolvimento do embrião, evitando que o mesmo germine. Com a aplicação de tetraciclina ocorre a expressão do gene, produzindo uma enzima recombinase, que permite a síntese de uma proteína letal ao embrião da planta. A semente seria tratada com tetraciclina antes de sua venda ao agricultor, impedindo o uso dos grãos colhidos como semente par a próxima safra.

 

Ambiental ou social?

Durante os debates acerca da ética do processo GURT, um dos argumentos utilizados por seus defensores era de que essa tecnologia atendia a um dos principais reclames dos ambientalistas, ou seja, interromperia inexoravelmente o fluxo gênico de OGMs para outras plantas. O que não deixa de ser um paradoxo, pois à custa de solver um desafio ambiental, enterra uma das prerrogativas dos produtores, preservada nas leis de propriedade intelectual, de poder, sob determinadas condições, produzir a sua própria semente, a partir de genótipos protegidos.   Surgiu, então, a idéia de unir, ao menos parcialmente, o interesse das duas partes. Isso seria possível através de uma tecnologia que permitisse a expressão dos caracteres introduzidos por transgenia, na primeira geração. Entretanto, a sua expressão na semente, colhida a partir desse primeiro plantio, somente seria possível com a aplicação de um produto químico, vendido pela companhia produtora da semente. Na ausência desse produto, a semente germinaria, porém os caracteres introduzidos por transgenia não seriam expressos. Essa linha de condução do processo mostra que, por vias legais ou tecnológicas, a agricultura terá que conviver com a proteção intelectual de produtos desenvolvidos por biotecnologia. Isso posto, aumenta a responsabilidade do investimento dos fundos governamentais para o setor, do que dependerá a soberania derivada do domínio tecnológico.

Biomassa e Bio-energia

Décio Luiz Gazzoni

A biomassa oferece as melhores perspectivas entre todas as fontes de energia renovável. Cana de açúcar, florestas cultivadas, soja, dendê, girassol, colza, milho, mandioca, palha de arroz, lascas ou serragem de madeira, dejetos de criação animal, são bons exemplos de biomassa. Seu valor energético é alto, pois uma tonelada de matéria seca gera 19 GJ, um hectare de cana produz 980 GJ e a mesma área reflorestada gera 400 GJ.   Energia
O joule (J
) é uma unidade de trabalho, de energia e de quantidade de calor e equivale a 0,24 caloria. O joule significa, também, o trabalho produzido por uma força de 1 newton (N), cujo ponto de aplicação se desloca 1 metro pela ação dessa força. Como os números referentes a energia são de grande magnitude, recorre-se aos prefixos gregos kilo (K), mega (M), giga (G), tera (T), peta (P) ou exa (E) para facilitar o entendimento. Cada Watt/hora equivale a 3.600 J. A Usina de Itaipu, a maior do mundo, no ano de 2.000 teve um recorde de produção de 93,4 TWh ou 336,4 PJ.
  Brasil
Anualmente, o Brasil colhe 360 milhões de ton de cana, em 5 milhões de hectares. Sua produtividade pode duplicar em 15 anos. Se, hipoteticamente, o Brasil plantasse cana em metade da terra arável não utilizada atualmente (50 milhões de ha), produziria 16,5 EJ de energia do álcool, além de 25 EJ de energia elétrica (a potência de 150 usinas de Itaipu, produzindo no pico). Isso equivale a 1 bilhão de barris de petróleo ou 10% da demanda mundial de energia. Nesse caso, o Brasil exportaria mais energia renovável que o petróleo vendido, atualmente, pela Arábia Saudita.

 

Oportunidades do porvir
Em 50 anos, a agricultura de energia terá maior valor financeiro que todo o restante da agricultura. As florestas frias demoram 30 a 50 anos para atingir a maturação. Já o eucalipto atinge a maturação em 8-15 anos, com maior volume de biomassa por hectare. A produção de carboidratos para obtenção de álcool, ou de óleo para gerar biodiesel, é muito maior e mais eficiente nos trópicos. A agricultura também será a base da indústria de química fina e farmacológica do futuro, de onde sairá a matéria prima para tintas, medicamentos e insumos agrícolas.
  Biotrade
O comércio internacional de energia (Biotrade) incluirá produtos primários (lenha, restos de processamento de madeira), produtos com alto valor energético (álcool, biodiesel, carvão vegetal), hidrogênio e eletricidade. O balanço energético e a sustentabilidade da produção serão as variáveis diretrizes das cadeias de agricultura energética. O transporte de resíduos de florestas dos Bálcãs até a Holanda (1.500 km), em pequenos barcos, utiliza 5% da energia que transporta. Em distâncias superiores a 10.000 km (Brasil–Europa), através de grandes petroleiros, consumirá 8% da energia transportada.

Análise do mercado

A mudança de perfil da matriz energética é inevitável. A taxa de incremento anual dependerá da consciência dos cidadãos e do embate dos lobies que pugnam pelos diferentes modelos energéticos. Horribile dictu, porém desastres ambientais, causados pelo efeito estufa, serão freqüentes e precipitarão as pressões por mudanças, orquestradas pelas ONGs. A invasão do Iraque, as ameaças à Síria e ao Irã e a instabilidade endêmica do Oriente Médio apressarão o advento de um mercado forte de bio-energia. As grandes companhias mundiais de energia convertem seus portfólios de negócios para abarcar fatias cada vez maiores de energia verde, sendo um fator de propulsão do mercado. No 17º. Congresso Mundial de Petróleo (Rio de Janeiro, 2002) parcela expressiva de programação científica foi devotada à energia renovável. Por outro lado, os países ricos tentarão manter o atual protecionismo da agricultura de alimentos e impor novas barreiras, para manter países como o Brasil fora desse rendoso negócio.   Balanço
A mudança da matriz energética é inevitável devendo concluir-se até 2050. Conforme o Biotrade se consolida, capitais e tecnologia migrarão para assegurar densidade ao mesmo. A oportunidade que se descortina é de um mercado fabuloso de bio-energia, que crescerá a altas taxas e que movimentará centenas de bilhões de dólares, a cada ano. Em 2050, estima-se que a biomassa envolverá recursos financeiros superiores ao valor do comércio internacional de petróleo deste início de século. O Brasil pode ser o grande beneficiário do negócio "Agricultura de Energia", bem como o responsável maior por evitar uma catástrofe climática de proporções. Compete às lideranças do agronegócio e às autoridades traçar, de imediato, a rota que nos permitirá liderar o negócio de bio-energia.

 

Mini-usinas, uma utopia?
Décio Luiz Gazzoni

Vislumbrar alternativas de modelos energéticos sustentáveis para o Brasil é gratificante, porque o nosso País é um dos poucos que pode conceder-se o luxo de selecionar o mix de fontes de energia a usar. Por exemplo, com menos de quatro mil mini-usinas de processamento de cana-de-açúcar produzir-se-iam 170 milhões de litros de álcool por dia, permitindo substituir a importação de 600 mil barris diários de petróleo. Adcionalmente, produzir-se-ia o equivalente a duas Itaipus, algo como 25 GW de eletricidade por ano, acabando com o risco de racionamento energético e mandando às favas o famigerado seguro apagão - a taxa mensal que cada consumidor paga a mais na conta de energia elétrica. O custo de implantação de uma mini-usina é estimado em US$12 milhões e o retorno é estimado em menos de sete anos de operação. Pode parecer um alto investimento, porém ele equivale a um terço do que o Governo pagará, no conceito de juros do serviço da dívida, em 2003!   Auto-suficiência
O Brasil persegue a auto-suficiência energética há décadas. Premido pelo déficit da balança comercial - onde o petróleo representava o item mais importante - e nocauteado pelo choque do petróleo dos anos 80, o País buscou alternativas para sua substituição. Além de reduzir a fuga de divisas, a independência energética significaria não dormir preocupado com a instabilidade do Oriente Médio, onde cada olhar atravessado ou gesto belicoso significa choques de preço e de oferta de petróleo. As duas principais vantagens comparativas do Brasil são o seu potencial hidroelétrico e a produção de biomassa. Apenas recentemente o Brasil delimitou reservas petrolíferas em águas profundas, que lhe conferiram um colchão para acomodar choques de oferta energética. E a dependência do gás importado, embora boa solução de momento, sempre deixa entreaberta a via de conflitos que resultem em soluços de abastecimento. Em ambos os casos, o preço é formado no exterior, impedindo a internalização da vantagem da auto-suficiência.

 

Pro-álcool
Além de um sucesso nacional, o programa poderia ter se constituído em paradigma para outros países com as mesmas restrições e potencialidades do Brasil. Dispondo de vasta área agricultável, clima, solo e tecnologia para produção de diversas matérias primas, mormente a cana-de-açúcar, o programa reunia todas as condições para se perenizar, tamanhas as suas vantagens econômicas e estratégicas. Além de combustível, permitia a produção de energia elétrica, de bio-fertilizantes e a conformação de uma indústria álcool-química, que rivalizaria com a petroquímica. Entretanto, a elevação dos preços do açúcar, os desajustes macro-econômicos do País, a redução nos preços do petróleo, a ausência de uma política perene, consistente e consentânea com as necessidades energéticas do Brasil e a falta de persistência (salve Felipão, o cabeçudo!) das autoridades e lideranças setoriais, fizeram com que o programa agonizasse nos anos 90.
  O repensar
Uma boa idéia, quando "queimada", necessita de um tempo para apagar o fracasso da memória, a fim de retornar com a força de seu potencial. Hoje, o Brasil adiciona 26% de álcool na gasolina, o que não é pouca coisa. Os veículos puramente movidos a álcool são minoria e poucos veículos novos saem das fábricas com esta característica. Entretanto, já estão no mercado os veículos multi-combustível, com sensores que ajustam, automaticamente, o seu funcionamento com qualquer proporção de álcool e gasolina (entre 0 e 100%). Os EUA, cientes da finitude das reservas de petróleo, investem em ambiciosos programas de produção de álcool e de biodiesel, a partir do milho e da soja.

 

 

Ecologicamente amigável

Acrescente-se que o potencial poluente do álcool é muito inferior ao dos combustíveis derivados de petróleo. Cálculos efetuados pela Universidade de São Carlos mostram que, se entrassem em operação as quatro mil mini-usinas referidas acima, evitaríamos colocar na atmosfera dois milhões de toneladas de CO2 por dia, um dos principais responsáveis pelo efeito estufa. E a produção de biomassa também seqüestraria da atmosfera 200 milhões de toneladas de dióxido de carbono, reduzindo o problema do efeito estufa. Some-se o efeito social decorrente da geração de 50 mil empregos, a arrecadação de US$6 bilhões em impostos e a poupança de US$8 bilhões em importação de energia, a cada ano, e veremos que a idéia dos pesquisadores da Universidade de São Carlos mais que uma vox clamantis in deserto deve ser considerada com muito carinho pelos estrategistas brasileiros.

contador de visitas